domingo, 15 de fevereiro de 2009

O Desafio das Drogas











Uma guerra perdida.

A violência e o crime organizado associados ao tráfico de drogas ilícitas constituem um dos problemas mais graves da América Latina. Frente a uma situação que se deteriora a cada dia, com altíssimos custos humanos e sociais, é imperativo retificar a estratégia de “guerra contra as drogas” aplicada nos últimos trinta anos na região.

As políticas proibicionistas baseadas na repressão à produção e ao tráfico bem como na criminalização do consumo, não produziram os resultados esperados. Estamos mais distantes que nunca do objetivo proclamado de erradicação das drogas.

Uma avaliação realista indica que:

A América Latina continua sendo o maior exportador mundial de cocaína e maconha, converteu-se em crescente produtora de ópio e heroína e se inicia na produção de drogas sintéticas;

Os níveis de consumo continuam se expandindo na América Latina, enquanto tendem a se estabilizar na América do Norte e Europa;

Na América Latina, a revisão em profundidade das políticas atuais é ainda mais urgente à luz de seu elevadíssimo custo humano e das ameaças às instituições democráticas.

Assistimos nas últimas décadas a:

Um aumento do crime organizado ligado ao narcotráfico e ao controle de mercados e territórios por parte dos grupos criminosos;

Um crescimento da violência a níveis inaceitáveis, afetando o conjunto da sociedade e, em particular, os pobres e jovens;

A criminalização da política e a politização do crime, bem como a proliferação de vínculos entre ambos, que se reflete na infiltração do crime organizado nas instituições democráticas;

A corrupção dos funcionários públicos, do sistema judiciário, dos governos, do sistema político e, particularmente, das forças policiais encarregadas de manter a lei e a ordem.


Romper o silêncio, abrir o debate:

O modelo atual de política de repressão às drogas está firmemente arraigado em preconceitos, temores e visões ideológicas. O tema se transformou em um tabu que inibe o debate público por sua identificação com o crime, bloqueia a informação e confina os consumidores de drogas em círculos fechados, onde se tornam ainda mais vulneráveis à ação do crime organizado.

Por isso, romper o tabu, reconhecer os fracassos das políticas vigentes e suas consequências, é uma precondição para a discussão de um novo paradigma de políticas mais seguras, eficientes e humanas.

Isso não significa condenar em bloco as políticas que custaram enormes recursos econômicos e o sacrifício de incontáveis vidas humanas na luta contra o tráfico de drogas. Tampouco implica desconhecer a necessidade de combater os cartéis e traficantes. Significa que devemos reconhecer a insuficiência dos resultados e, sem desqualificar em bloco os esforços feitos, abrir o debate sobre estratégias alternativas, com a participação de setores da sociedade que se mantiveram a margem do problema por considerar que sua solução cabe às autoridades.

A questão que se coloca é reduzir drasticamente o dano que as drogas fazem às pessoas, sociedades e instituições. Para isso, é essencial diferenciar as substâncias ilegais de acordo com o prejuízo que provocam para a saúde e a sociedade.

Políticas seguras, eficientes e fundadas nos direitos humanos implicam reconhecer a diversidade de situações nacionais bem como priorizar a prevenção e o tratamento. Essas políticas não devem negar a importância das ações repressivas para enfrentar os desafios impostos pelo crime organizado – inclusive com a participação das forças armadas, em situações limite, de acordo com a decisão de cada país.


Limites e efeitos indesejáveis das estratégias repressivas.

É imperativo examinar criticamente as deficiências da estratégia proibicionista seguida pelos Estados Unidos e as vantagens e os limites da estratégia de redução de danos seguida pela União Européia, bem como a pouca prioridade dada ao problema das drogas, por alguns países, tanto industrializados como em desenvolvimento.

A Colômbia é um exemplo claro das limitações da política repressiva promovida globalmente pelos Estados Unidos. Durante décadas, o país adotou todas as medidas de combate imagináveis, em um esforço descomunal, cujos benefícios não correspondem aos enormes gastos e custos humanos.

Apesar dos significativos êxitos da Colômbia em sua luta contra os cartéis da droga e a redução dos índices de violência e de delitos, voltaram a crescer as áreas de plantação de culturas ilícitas bem como o fluxo de drogas a partir da Colômbia e da área Andina.

O México se converteu, de maneira acelerada, em outro epicentro da atividade violenta dos grupos criminosos do narcotráfico. Isto impõe desafios enormes ao governo mexicano em sua luta contra os cartéis de drogas que substituíram os traficantes colombianos como introdutores da maior quantidade de narcóticos no mercado dos Estados Unidos. O México tem direito de reivindicar do Governo e das instituições da sociedade norteamericana um debate sobre as políticas que lá se aplicam e também de pedir à União Européia um esforço maior para a redução do consumo. A traumática experiência colombiana, sem dúvida, é uma referência para que se evite o erro de seguir as políticas proibicionistas dos Estados Unidos e que se encontrem alternativas inovadoras.

A política européia de focalizar a redução de danos causados pelas drogas como um assunto de saúde pública, por meio do tratamento dos usuários, se mostra mais humana e eficiente. Porém, ao não priorizar a redução do consumo, sob o argumento de que as estratégias de redução de danos minimizam a dimensão social do problema, a política dos países da União Européia mantém intacta a demanda de drogas ilícitas que estimula sua produção e exportação de outras partes do mundo.

A solução de longo prazo para o problema das drogas ilícitas passa pela redução da demanda nos principais países consumidores. Não se trata de buscar países culpados por tal ou qual ação ou omissão, mas sim de afirmar que os Estados Unidos e a União Européia são corresponsáveis pelos problemas que enfrentamos na região, pois seus mercados são os maiores consumidores das drogas produzidas na América Latina. É desejável, por isso, que apliquem políticas que efetivamente diminuam o nível de consumo e que reduzam significativamente o tamanho deste negócio criminoso.

A visão da América Latina: rumo a um novo paradigma.

Considerando a experiência da América Latina na luta contra o tráfico de drogas e a gravidade do problema na região, a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia se dirige à opinião pública e aos governos da América Latina, às Nações Unidas e à comunidade internacional, propondo um novo paradigma sustentado em três grandes diretrizes:

Tratar o consumo de drogas como uma questão de saúde pública.

Reduzir o consumo por meio de ações de informação e prevenção.

Focalizar a repressão sobre o crime organizado.

Nosso enfoque não é de tolerância com as drogas. Reconhecemos que as drogas provocam danos às pessoas e à sociedade. Tratar o consumo de drogas como uma questão de saúde pública e promover a redução de seu uso são precondições para focalizar a ação repressiva em seus pontos críticos: a diminuição da produção e o desmantelamento das redes de traficantes.

Para concretizar esta mudança de paradigma, propomos que a América Latina tome as seguintes iniciativas no marco de um processo global de transformação das políticas de combate ao uso de drogas ilícitas:

1. Transformar os dependentes de compradores de drogas no mercado ilegal em pacientes do sistema de saúde.

A enorme capacidade de violência e corrupção do narcotráfico só poderá ser combatida efetivamente se suas fontes de renda forem substancialmente debilitadas. Com este objetivo, o Estado deve criar as leis, instituições e regulações que permitam que as pessoas dependentes de drogas deixem de ser compradores no mercado ilegal para se transformar em pacientes do sistema de saúde. Isto, em conjunto com campanhas educativas e de informação, levaria a uma redução da demanda de drogas ilegais e à derrocada dos preços das mesmas, minando-se desta maneira as bases econômicas deste negócio criminoso.

2. Avaliar, com um enfoque de saúde pública e fazendo uso da ciência médica mais avançada, a conveniência de descriminalizar a posse de maconha para consumo pessoal.

A maconha é, de longe, a droga mais difundida na América Latina. Seu consumo tem um impacto negativo sobre a saúde, inclusive à saúde mental. Entretanto, a evidência empírica disponível indica que os danos causados por esta droga são similares aos causados pelo álcool e o tabaco. Mais importante ainda, grande parte dos danos associados à maconha – da prisão e encarceramento indiscriminado de consumidores à violência e corrupção que afetam toda a sociedade – são o resultado das políticas proibicionistas vigentes. É importante reiterar que a simples descriminalização do consumo, se não for acompanhada de políticas de informação e prevenção, pode ter como consequência o aprofundamento dos problemas de dependência.

Os Estados Unidos é provavelmente o país industrializado que dedica mais recursos à luta contra o tráfico de drogas ilícitas. O problema está na eficácia e consequência de suas ações. Sua política de encarcerar os usuários de drogas, questionável do ponto de vista do respeito aos direitos humanos e de sua eficácia, é inaplicável na América Latina, considerando a superpopulação carcerária e as condições do sistema penitenciário. Esta política repressiva propicia a extorsão dos consumidores e a corrupção da polícia.

Neste país também é descomunal a magnitude dos recursos que se usa para a interdição do tráfico e para sustentar o sistema carcerário em comparação ao que se destina para a saúde e a prevenção, tratamento ou reabilitação dos consumidores.

3. Reduzir o consumo através de campanhas inovadoras de informação e prevenção que possam ser compreendidas e aceitas pela juventude, que é o maior contingente de usuários.

As drogas afetam o poder de decisão dos indivíduos. O testemunho de ex-dependentes sobre estes riscos pode ter maior poder de convencimento que a ameaça de repressão ou a exortação virtuosa a não consumir. As mudanças na sociedade e na cultura que levaram reduções impressionantes no consumo de tabaco demonstram a eficiência de campanhas de informação e prevenção baseadas em uma linguagem clara e argumentos consistentes com a experiência das pessoas a que se destinam.

Cabe às campanhas de comunicação alertar constantemente a população em geral e os consumidores em particular sobre a responsabilidade de cada um diante do problema, os perigos que o “dinheiro fácil” gera e os custos de violência e corrupção associados ao tráfico de drogas.

A maior parte das campanhas de prevenção que hoje se desenvolvem no mundo é bastante ineficiente. Há muito que aprender com as experiências de países europeus como, por exemplo, o Reino Unido, a Holanda e a Suíça, e é preciso explorar experiências de outras regiões.

4. Focalizar as estratégias repressivas na luta implacável contra o crime organizado.

As políticas públicas deverão priorizar a luta contra os efeitos mais nocivos do crime organizado para a sociedade, como a violência, a corrupção das instituições, a lavagem de dinheiro, o tráfico de armas, o controle de territórios e populações. Nesta questão é importante o desenvolvimento de estratégias regionais e globais.

5. Reorientar as estratégias de repressão ao cultivo de drogas ilícitas.

Os esforços de erradicação devem ser combinados com a adoção de programas de desenvolvimento alternativo seriamente financiado e que contemplem as realidades locais em termos de produtos viáveis e com acesso aos mercados em condições competitivas.

Deve-se falar não somente de cultivos alternativos como também de desenvolvimento social de fontes de trabalho alternativo, de educação democrática e de busca de soluções em um contexto participativo.

Simultaneamente, é preciso considerar os usos lícitos de plantas como a coca, nos países onde existe longa tradição sobre seu uso ancestral anterior ao fenômeno de sua utilização como insumo para a fabricação de droga, promovendo medidas para que a produção se ajuste estritamente a esse tipo de consumo.

A participação da Sociedade civil e da opinião pública.

Um novo paradigma para enfrentar o problema das drogas deverá estar menos centrado nas ações penais e ser mais inclusivo no plano da sociedade e da cultura. As novas políticas devem se basear em estudos científicos e não em princípios ideológicos. Neste esforço, é preciso envolver não somente os governos, mas o conjunto da sociedade.

A percepção do problema pela sociedade, bem como a legislação sobre drogas ilícitas encontra-se em processo acelerado de transformação na América Latina. Um número crescente de lideranças da política, sociedade civil e cultura têm falado sobre a necessidade de uma mudança drástica de orientação.

O aprofundamento do debate em relação às políticas sobre consumo de drogas deve apoiar-se em avaliações rigorosas do impacto das diversas propostas e medidas alternativas à estratégia proibicionista que já estão sendo experimentadas em diversos países, buscando a redução dos danos individuais e sociais.

Esta construção de alternativas é um processo que requer a participação de múltiplos atores sociais: instituições de justiça e segurança, educadores, profissionais da saúde, líderes espirituais, as famílias, formadores de opinião e comunicadores. Cada país deve enfrentar o desafio de abrir um amplo debate público sobre a gravidade do problema e a busca das políticas mais adequadas a sua história e sua cultura.

No âmbito continental, a América Latina deve estabelecer um diálogo com o governo, com congressistas e sociedade civil dos Estados Unidos para desenvolver de forma conjunta alternativas à política de “guerra contra as drogas”. O início da administração de Barack Obama representa uma oportunidade propícia para a revisão em profundidade de uma estratégia que fracassou e a busca em comum de políticas mais eficientes e mais humanas.

Simultaneamente, no nível global, devemos avançar na articulação de uma voz e visão da América Latina capaz de influir no debate internacional sobre drogas ilícitas, sobretudo no marco das Nações Unidas e da Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas.

Esta participação ativa da América Latina no debate global marcaria a transição de região-problema para região-pioneira na tomada de soluções inovadoras para a questão das drogas.

Cada país deve enfrentar o desafio de abrir um amplo debate público sobre a gravidade do problema e a busca de políticas mais adequadas a sua história e sua cultura.

Drogas e Democracia: rumo a um novo paradigma apresenta ao debate público as principais conclusões da Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia.

Criada pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso do Brasil, César Gaviria da Colômbia e Ernesto Zedillo do México e integrada por 17 personalidades independentes, a Comissão avaliou o impacto das políticas de “guerra contra as drogas” e formulou recomendações para estratégias mais eficientes, seguras e humanas. As propostas apresentadas nesta Declaração configuram uma mudança profunda de paradigma no entendimento e enfrentamento do problema das drogas na América Latina.

Fonte: http://www.plataformademocratica.org/Portugues/

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