Le Monde diplomatique Brasil
Por que a Grécia está em chamas
Repressão policial, corrupção endêmica, democracia esvaziada. Faltava, mesmo, só a crise econômica para desencadear uma revolta com características muito originais. Anarquistas e esquerda radical estão à frente. E não se trata de um fenômeno apenas grego...
Valia Kaimaki
“Amigo, seja bem-vindo ao terreno das lutas sociais. A partir de agora, você precisa proteger a si mesmo e também a suas reivindicações” Essa foi uma resposta do octogenário Leonidas Kyrkos, veterano da vida política grega e personagem-chave da esquerda local, à seguinte pergunta: “O que o senhor tem a dizer aos jovens que se manifestam atualmente?”.
Os protestos começaram depois que um rapaz de 15 anos, Alexis Grigoropoulos, foi morto pela polícia em 6 de dezembro passado. Estudantes invadiram as ruas de várias cidades gregas: Atenas, Salônica, Patras, Larissa, Iraklion, Chania (Creta), Ioannina, Volos, Kozani, Komotini. Essas manifestações espontâneas, que foram combinadas por mensagens de celular e e-mails, resultaram em explosões de violência movidas por uma raiva espantosa.
A revolta tem em sua origem múltiplos fatores, dos quais a repressão policial é apenas o mais evidente. Alexis não é a primeira vítima dessa brutalidade, mas apenas a mais jovem dentre elas. O terreno fértil no qual o levante germinou é obviamente a crise econômica, a qual já vinha atingindo duramente o país muito antes que a tempestade mundial produzisse seus efeitos. A ela, acrescenta-se uma crise política profunda, que é ao mesmo tempo sistêmica e moral. Provocada pela falta de transparência nas ações dos partidos e dos representantes políticos, ela resulta numa falta de confiança em todas as instituições do Estado.
De maneira nenhuma o homicídio de Alexis pode ser explicado como fruto de um “tropeço acidental”: o seu nome figura numa extensa lista de assassinatos e torturas contra manifestantes ou imigrantes. São crimes que até hoje permanecem impunes. Em 1985, por exemplo, outro jovem de 15 anos, Michel Kaltezas, foi morto por um policial. O agente acabou absolvido pelo sistema judiciário grego, que ficou com uma péssima imagem perante a sociedade.
Isso não quer dizer que as forças da ordem atenienses ajam de modo diferente das de outros países da Europa. Mas, na Grécia, as feridas da ditadura (1967-1974) permanecem abertas. O subconsciente coletivo não se esqueceu do período de trevas que dominou o país durante sete anos. Os gregos não perdoam facilmente. Isso explica a grande dessemelhança desses acontecimentos com os eventos nas cidades periféricas da França em 2005, que fizeram com que o futuro presidente Nicolas Sarkozy, então ministro do Interior, pudesse proferir o discurso sedutor “da lei e da ordem”.
A Syriza, uma aliança dos movimentos de esquerda radical, consegue se comunicar com os jovens. Daí a expansão espetacular de sua popularidade: de 5,04 % de votos, nas eleições legislativas de setembro de 2007 para 13% agora, segundo pesquisas.
Os gregos, pelo contrário, formam uma frente única contra a repressão. Um movimento tão forte que vem abalando as fundações do governo de direita. Entre os líderes dessa aliança há representantes de uma geração que está longe de ser adulta. Não é por menos. A vida cotidiana dos estudantes colegiais se caracteriza por uma escolarização intensiva, cujo principal objetivo é conquistar uma vaga na universidade. A seleção é rigorosa, e os jovens se preparam para enfrentá-la a partir dos 12 anos de idade. Os felizes vencedores descobrem então a realidade da vida depois da faculdade: no melhor dos casos, eles conseguirão um emprego remunerado com um salário de 700 euros por mês (cerca de R$ 2.100). Há muito tempo, a Grécia vem lidando com essa “geração que vale 700 euros”.
Alguns dos seus membros reúnem-se em uma associação chamada “Geração 700”, ou “G700”, que se esforça para fazer com que sua voz seja ouvida, ao mesmo tempo em que oferece serviços jurídicos gratuitos a seus membros. Isso porque até aqueles que têm a “sorte” de ganhar esses 700 euros são contratados como prestadores de serviços terceirizados.
Nesse país, o contrato de duração determinada (CDD) constitui uma exceção, uma vez que dá direito à seguridade social, ao décimo terceiro salário, a indenizações em caso de demissão e outras “regalias”. Em contrapartida, os contratos dos terceirizados, frequentes inclusive nos serviços públicos, não são regidos pelo direito trabalhista. Em vez de “trabalho precário”, fala-se na “locação” de trabalhadores.
É contra essa violência que os jovens reagem com brutalidade. “Os índices de avaliação da situação econômica atual e das expectativas dos cidadãos em relação ao futuro alcançaram um nível tão baixo que já constituem um recorde”, observa Stratos Fanaras, integrante do instituto de estudos estatísticos Metron Analysis. “As pessoas estão muito decepcionadas e não têm nenhuma esperança de que a situação possa melhorar. E isso independentemente da classe social, do nível educacional ou do sexo. A Fundação dos Estudos Econômicos e Industriais, que publica um relatório todo mês desde 1981, constata também um nível excepcionalmente baixo do índice que mede o dinamismo econômico”, completa.
Em meio a esse ambiente de desânimo, os cidadãos comuns acabam não dispondo das informações e instrumentos necessários para analisar a situação do país. São arrancados da passividade apenas pela violência policial, que termina por definir os campos de conflito. Geralmente desnorteados, “eles percebem os assassinatos como ações que se inscrevem claramente dentro de uma lógica maniqueísta”, prossegue Stratos Fanaras. “A tragédia de Alexis lhes permitiu distinguir novamente o ‘bem e o mal’ e, portanto, tomar partido”.
Esse engajamento, porém, não está verdadeiramente vinculado à política, tamanha é a descrença dos jovens no sistema e nos partidos. Em resumo, três agremiações vêm dominando a cena política grega desde os anos 1950. Os dois grandes partidos, a Nova Democracia (de direita) e o Pasok (socialista), dividem o poder entre si. Já o Partido Comunista (KKE, também chamado de “do exterior”) não consegue aparecer como uma força alternativa em condições de oferecer soluções, principalmente porque insiste em manter sua tradição stalinista [1].
Por sua vez, a Syriza, uma aliança dos movimentos que pertencem à esquerda radical, oriundos em sua maioria do Partido Comunista chamado “do interior”, fundado em 1968, parece conseguir se comunicar melhor com os jovens. Daí a expansão espetacular de sua popularidade: embora não obtivesse mais que modestos 5,04% de votos, nas eleições legislativas de setembro de 2007, seis meses mais tarde as pesquisas lhe atribuíam 13% das preferências.
Os jovens afirmam que, num país onde predomina a corrupção, ninguém corre o risco de ser punido. Os manifestantes mais radicais quebram e incendeiam as cidades. Em Atenas, reúnem-se na praça Exarchia, onde Alexis foi morto e onde a juventude venceu a ditadura, em 1973.
A eleição de um jovem de 33 anos, Alexis Tsipras, integrante da Coalizão da Esquerda e do Progresso, principal força da Syriza, contribuiu amplamente para essa ascensão. Seu posicionamento original em relação aos problemas atuais e suas “jogadas midiáticas” – que incluíram a escolha de uma jovem imigrante para acompanhá-lo na grande recepção oferecida pelo presidente – permitiram-lhe conquistar a simpatia de uma parte da juventude. Mesmo depois da sua estabilização nas pesquisas de opinião, a Syriza conta atualmente com 8% das intenções de voto, muito à frente de um KKE que se revela incapaz de compreender essa transformação.
A disputa pela supremacia no âmbito da esquerda contestatória motivou os comunistas a aprovar o governo da Nova Democracia e o partido do Alarme Popular Ortodoxo (LAOS, de extrema direita [2]), que denunciavam publicamente a Syriza como sendo um “refúgio dos arruaceiros”. Claro, eles precisavam de um bode expiatório para distrair a opinião pública sobre as verdadeiras causas da crise. Já o Pasok prefere manter-se calado, com a esperança de retornar mais rápido do que o previsto ao poder.
O governo atual tem uma grande responsabilidade pela situação de conflito que vive o país. Eleito pela primeira vez em 2004, o primeiro-ministro Kostas Karamanlis prometeu um governo transparente, mas agora está atolado, junto com sua equipe, em escândalos ainda mais graves do que os de seus predecessores. As denúncias giram em torno de subornos, nepotismo e desvio de verbas públicas. O mais recente deles diz respeito à venda ilegal de terras estatais aos monges do monte Áthos. Os autores do processo ilícito permanecem desconhecidos.
Os jovens estão totalmente corretos quando afirmam que, num país onde predomina a corrupção, ninguém corre o risco de ser punido. Escondendo o rosto com lenços ou capuzes – aliás, eles são chamados de “os encapuzados” –, os manifestantes mais radicais quebram e incendeiam as cidades gregas.
Em Atenas, eles costumam se reunir na praça Exarchia, mesmo local onde Alexis foi morto. O lugar tem ainda outro simbolismo: está situado ao lado da Escola Politécnica, onde a juventude travou uma batalha decisiva contra a ditadura, em 1973. Para a polícia, os enfrentamentos entre anarquistas e forças da ordem já se tornaram uma amarga tradição. “É um fenômeno novo”, observa um estudante. Até então, nas manifestações, os estudantes e os delegados dos sindicatos ocupavam a frente do cortejo. Eles eram seguidos pelos partidos políticos, entre os quais a Syriza, que sempre vinham por último.
As imagens difundidas por emissoras do mundo inteiro mostravam, sobretudo, os incêndios provocados por esses grupos. Entretanto, o espectador atento pôde constatar diferenças notáveis em relação ao espetáculo habitual. Em primeiro lugar, as multidões de “quebradores” estavam muito mais densas do que anteriormente. Além disso, eles não limitaram o palco das operações apenas a Atenas, ampliando seu raio de ação em muitas outras cidades. E principalmente, os atos de violência urbana prosseguiram ao longo de vários dias. Isso permite concluir que, desta vez, uma grande massa de jovens se envolveu nessa onda de violência. A maioria nunca tivera contato antes com o anarquismo ou outra ideologia de esquerda. Por trás das barricadas, levantadas nos mais diversos lugares estavam até estudantes de 13 e 14 anos.
O governo valeu-se dos “encapuzados” para denunciar uma “ofensa à democracia”. “De qual democracia estão falando?”, rebateram os contestadores. Não há dúvida de que os colegiais e os universitários que aderiram aos protestos atacaram a polícia a pedradas. É verdade também que eles destruíram agências bancárias. Mas, alguns dias antes, esse governo, indiferente ao afundamento na miséria de centenas de milhares de gregos, havia oferecido aos bancos mais importantes do país um polpudo pacote de 28 bilhões de euros. Essas mesmas instituições delegam para certas companhias privadas de cobrança a tarefa de forçar o pagamento dos pequenos créditos — o que elas fazem lançando mão de insultos, ameaças e confiscos.
Apesar de se revelar violenta em muitos casos, a cólera da juventude nem por isso é politizada. Mas isso poderia ser diferente quando os próprios partidos, com a exceção dos da extrema esquerda, mantêm-se indiferentes às exigências do movimento? “Nada obtivemos. Nenhuma abertura de diálogo, nem mesmo uma troca de mensagens e menos ainda sinais de que conclusões foram tiradas do ocorrido. Eles agem como se tivessem optado por esperar que os jovens se cansem da ‘quebradeira’ para que a revolta seja encerrada”, comenta o analista Fanaras. Ele avalia ainda que muitos dos manifestantes terão de se conformar e voltar para casa com as mãos abanando... Até a próxima provocação ou pretexto.
Enquanto isso, outros serão atraídos pelos grupos violentos. “Este já havia sido o caso depois do assassinato de Michel Kaltezas”, confirma o ex-jornalista Alexandre Yiotis, um antigo anarcocomunista que no passado fora um membro ativo dessa vertente na França, na Espanha e na Grécia. E acrescenta: “Os estudantes revoltados naquela época foram reforçar, entre outras, as fileiras da organização terrorista 17 de Novembro”. Aposentado do ativismo, Yiotis aponta ainda que a maior parte das bandeiras erguidas durante as manifestações combinava as cores vermelho e preto, simbolizando a união do comunismo e do anarquismo.
Na propaganda de Estado que vem sendo divulgada pela mídia, sobretudo pela televisão, dois elementos chamam a atenção. O primeiro diz respeito ao papel dos imigrantes nos acontecimentos. Um dos comentários apontou que os saques das lojas incendiadas foram perpetrados por imigrantes esfomeados. Em outro programa foi dito que, na Ásia, “esta constitui uma prática comum: protestar, quebrar, furtar!” Ora, está claro que os manifestantes violentos foram recrutados essencialmente entre os autóctones, revoltados contra um sistema político corrupto. E se alguns ciganos tomaram parte nas depredações, tratava-se para eles, sobretudo, de vingar seus familiares, vítimas esquecidas da repressão policial.
O movimento ganha aliados em outros países da Europa. A razão é simples: essa é a primeira geração, desde a Segunda Guerra Mundial, a perder as esperanças de viver melhor que seus pais. E não se trata de um fenômeno exclusivamente grego...
Além disso, em certos lugares multidões esfomeadas de fato perpetraram saques, mas a maioria era exclusivamente grega. “Este é um fenômeno novo”, observa um estudante “Até então, nas manifestações, os estudantes e os delegados dos sindicatos ocupavam a frente do cortejo. Eles eram seguidos pelos partidos políticos, entre os quais a Syriza, que sempre vinha por último". "Depois apareciam os anarquistas e, quando o conflito começava, estes entravam nas fileiras da Syriza… E todo mundo levava uma surra. Agora, depois dos anarquistas, começou a aparecer um novo bloco: o dos esfomeados. Quer sejam imigrante, drogados ou desesperados, eles sabem que nas manifestações conseguirão encontrar comida”.
O poder e a mídia também lançaram mão de outra invenção: “cidadãos irados” teriam se organizado, entre si, para defender a lei e rechaçar os “quebradores”. Mas foi justamente o contrário que aconteceu: eles tentaram expulsar… os policiais militares! Pequenos comerciantes interpelaram os agentes da ordem, intimando-os aos berros a se retirar, enquanto transeuntes se jogavam sobre eles para libertar os estudantes presos.
Tomando consciência de que não era mais possível manter seus filhos em casa, pais e avôs foram para as ruas junto com eles para protegê-los. Um mundo às avessas… Será esse um movimento de longa duração? “Considerando que a crise econômica mundial em breve tomará conta do nosso país, que uma grande parte da juventude permanecerá marginalizada, que a situação da educação não irá melhorar tão cedo e que nós estamos muito longe de assistir ao fim da corrupção política, não faltará combustível para alimentar essa fogueira”, sublinha o jornalista e analista político Dimitris Tsiodras.
O movimento ganha aliados em outros países da Europa. A razão é simples: essa é a primeira geração, desde a Segunda Guerra Mundial, a perder as esperanças de viver melhor que seus pais. E não é um fenômeno exclusivamente grego.
[1] A ponto de considerar que a União Soviética morreu em 1956, o ano do 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, que foi o palco do relatório secreto de Nikita Kruchov e do começo da desestalinização.
[2] Com esse partido racista e antissemita, a extrema direita voltou a ocupar assentos no Parlamento, em 2007, pela primeira vez desde 1974.
Fonte: Le Monde diplomatique Brasil: Por que a Grécia está em chamas?
Acesse: http://diplo.uol.com.br/2009-01,a2732
Por que a Grécia está em chamas
Repressão policial, corrupção endêmica, democracia esvaziada. Faltava, mesmo, só a crise econômica para desencadear uma revolta com características muito originais. Anarquistas e esquerda radical estão à frente. E não se trata de um fenômeno apenas grego...
Valia Kaimaki
“Amigo, seja bem-vindo ao terreno das lutas sociais. A partir de agora, você precisa proteger a si mesmo e também a suas reivindicações” Essa foi uma resposta do octogenário Leonidas Kyrkos, veterano da vida política grega e personagem-chave da esquerda local, à seguinte pergunta: “O que o senhor tem a dizer aos jovens que se manifestam atualmente?”.
Os protestos começaram depois que um rapaz de 15 anos, Alexis Grigoropoulos, foi morto pela polícia em 6 de dezembro passado. Estudantes invadiram as ruas de várias cidades gregas: Atenas, Salônica, Patras, Larissa, Iraklion, Chania (Creta), Ioannina, Volos, Kozani, Komotini. Essas manifestações espontâneas, que foram combinadas por mensagens de celular e e-mails, resultaram em explosões de violência movidas por uma raiva espantosa.
A revolta tem em sua origem múltiplos fatores, dos quais a repressão policial é apenas o mais evidente. Alexis não é a primeira vítima dessa brutalidade, mas apenas a mais jovem dentre elas. O terreno fértil no qual o levante germinou é obviamente a crise econômica, a qual já vinha atingindo duramente o país muito antes que a tempestade mundial produzisse seus efeitos. A ela, acrescenta-se uma crise política profunda, que é ao mesmo tempo sistêmica e moral. Provocada pela falta de transparência nas ações dos partidos e dos representantes políticos, ela resulta numa falta de confiança em todas as instituições do Estado.
De maneira nenhuma o homicídio de Alexis pode ser explicado como fruto de um “tropeço acidental”: o seu nome figura numa extensa lista de assassinatos e torturas contra manifestantes ou imigrantes. São crimes que até hoje permanecem impunes. Em 1985, por exemplo, outro jovem de 15 anos, Michel Kaltezas, foi morto por um policial. O agente acabou absolvido pelo sistema judiciário grego, que ficou com uma péssima imagem perante a sociedade.
Isso não quer dizer que as forças da ordem atenienses ajam de modo diferente das de outros países da Europa. Mas, na Grécia, as feridas da ditadura (1967-1974) permanecem abertas. O subconsciente coletivo não se esqueceu do período de trevas que dominou o país durante sete anos. Os gregos não perdoam facilmente. Isso explica a grande dessemelhança desses acontecimentos com os eventos nas cidades periféricas da França em 2005, que fizeram com que o futuro presidente Nicolas Sarkozy, então ministro do Interior, pudesse proferir o discurso sedutor “da lei e da ordem”.
A Syriza, uma aliança dos movimentos de esquerda radical, consegue se comunicar com os jovens. Daí a expansão espetacular de sua popularidade: de 5,04 % de votos, nas eleições legislativas de setembro de 2007 para 13% agora, segundo pesquisas.
Os gregos, pelo contrário, formam uma frente única contra a repressão. Um movimento tão forte que vem abalando as fundações do governo de direita. Entre os líderes dessa aliança há representantes de uma geração que está longe de ser adulta. Não é por menos. A vida cotidiana dos estudantes colegiais se caracteriza por uma escolarização intensiva, cujo principal objetivo é conquistar uma vaga na universidade. A seleção é rigorosa, e os jovens se preparam para enfrentá-la a partir dos 12 anos de idade. Os felizes vencedores descobrem então a realidade da vida depois da faculdade: no melhor dos casos, eles conseguirão um emprego remunerado com um salário de 700 euros por mês (cerca de R$ 2.100). Há muito tempo, a Grécia vem lidando com essa “geração que vale 700 euros”.
Alguns dos seus membros reúnem-se em uma associação chamada “Geração 700”, ou “G700”, que se esforça para fazer com que sua voz seja ouvida, ao mesmo tempo em que oferece serviços jurídicos gratuitos a seus membros. Isso porque até aqueles que têm a “sorte” de ganhar esses 700 euros são contratados como prestadores de serviços terceirizados.
Nesse país, o contrato de duração determinada (CDD) constitui uma exceção, uma vez que dá direito à seguridade social, ao décimo terceiro salário, a indenizações em caso de demissão e outras “regalias”. Em contrapartida, os contratos dos terceirizados, frequentes inclusive nos serviços públicos, não são regidos pelo direito trabalhista. Em vez de “trabalho precário”, fala-se na “locação” de trabalhadores.
É contra essa violência que os jovens reagem com brutalidade. “Os índices de avaliação da situação econômica atual e das expectativas dos cidadãos em relação ao futuro alcançaram um nível tão baixo que já constituem um recorde”, observa Stratos Fanaras, integrante do instituto de estudos estatísticos Metron Analysis. “As pessoas estão muito decepcionadas e não têm nenhuma esperança de que a situação possa melhorar. E isso independentemente da classe social, do nível educacional ou do sexo. A Fundação dos Estudos Econômicos e Industriais, que publica um relatório todo mês desde 1981, constata também um nível excepcionalmente baixo do índice que mede o dinamismo econômico”, completa.
Em meio a esse ambiente de desânimo, os cidadãos comuns acabam não dispondo das informações e instrumentos necessários para analisar a situação do país. São arrancados da passividade apenas pela violência policial, que termina por definir os campos de conflito. Geralmente desnorteados, “eles percebem os assassinatos como ações que se inscrevem claramente dentro de uma lógica maniqueísta”, prossegue Stratos Fanaras. “A tragédia de Alexis lhes permitiu distinguir novamente o ‘bem e o mal’ e, portanto, tomar partido”.
Esse engajamento, porém, não está verdadeiramente vinculado à política, tamanha é a descrença dos jovens no sistema e nos partidos. Em resumo, três agremiações vêm dominando a cena política grega desde os anos 1950. Os dois grandes partidos, a Nova Democracia (de direita) e o Pasok (socialista), dividem o poder entre si. Já o Partido Comunista (KKE, também chamado de “do exterior”) não consegue aparecer como uma força alternativa em condições de oferecer soluções, principalmente porque insiste em manter sua tradição stalinista [1].
Por sua vez, a Syriza, uma aliança dos movimentos que pertencem à esquerda radical, oriundos em sua maioria do Partido Comunista chamado “do interior”, fundado em 1968, parece conseguir se comunicar melhor com os jovens. Daí a expansão espetacular de sua popularidade: embora não obtivesse mais que modestos 5,04% de votos, nas eleições legislativas de setembro de 2007, seis meses mais tarde as pesquisas lhe atribuíam 13% das preferências.
Os jovens afirmam que, num país onde predomina a corrupção, ninguém corre o risco de ser punido. Os manifestantes mais radicais quebram e incendeiam as cidades. Em Atenas, reúnem-se na praça Exarchia, onde Alexis foi morto e onde a juventude venceu a ditadura, em 1973.
A eleição de um jovem de 33 anos, Alexis Tsipras, integrante da Coalizão da Esquerda e do Progresso, principal força da Syriza, contribuiu amplamente para essa ascensão. Seu posicionamento original em relação aos problemas atuais e suas “jogadas midiáticas” – que incluíram a escolha de uma jovem imigrante para acompanhá-lo na grande recepção oferecida pelo presidente – permitiram-lhe conquistar a simpatia de uma parte da juventude. Mesmo depois da sua estabilização nas pesquisas de opinião, a Syriza conta atualmente com 8% das intenções de voto, muito à frente de um KKE que se revela incapaz de compreender essa transformação.
A disputa pela supremacia no âmbito da esquerda contestatória motivou os comunistas a aprovar o governo da Nova Democracia e o partido do Alarme Popular Ortodoxo (LAOS, de extrema direita [2]), que denunciavam publicamente a Syriza como sendo um “refúgio dos arruaceiros”. Claro, eles precisavam de um bode expiatório para distrair a opinião pública sobre as verdadeiras causas da crise. Já o Pasok prefere manter-se calado, com a esperança de retornar mais rápido do que o previsto ao poder.
O governo atual tem uma grande responsabilidade pela situação de conflito que vive o país. Eleito pela primeira vez em 2004, o primeiro-ministro Kostas Karamanlis prometeu um governo transparente, mas agora está atolado, junto com sua equipe, em escândalos ainda mais graves do que os de seus predecessores. As denúncias giram em torno de subornos, nepotismo e desvio de verbas públicas. O mais recente deles diz respeito à venda ilegal de terras estatais aos monges do monte Áthos. Os autores do processo ilícito permanecem desconhecidos.
Os jovens estão totalmente corretos quando afirmam que, num país onde predomina a corrupção, ninguém corre o risco de ser punido. Escondendo o rosto com lenços ou capuzes – aliás, eles são chamados de “os encapuzados” –, os manifestantes mais radicais quebram e incendeiam as cidades gregas.
Em Atenas, eles costumam se reunir na praça Exarchia, mesmo local onde Alexis foi morto. O lugar tem ainda outro simbolismo: está situado ao lado da Escola Politécnica, onde a juventude travou uma batalha decisiva contra a ditadura, em 1973. Para a polícia, os enfrentamentos entre anarquistas e forças da ordem já se tornaram uma amarga tradição. “É um fenômeno novo”, observa um estudante. Até então, nas manifestações, os estudantes e os delegados dos sindicatos ocupavam a frente do cortejo. Eles eram seguidos pelos partidos políticos, entre os quais a Syriza, que sempre vinham por último.
As imagens difundidas por emissoras do mundo inteiro mostravam, sobretudo, os incêndios provocados por esses grupos. Entretanto, o espectador atento pôde constatar diferenças notáveis em relação ao espetáculo habitual. Em primeiro lugar, as multidões de “quebradores” estavam muito mais densas do que anteriormente. Além disso, eles não limitaram o palco das operações apenas a Atenas, ampliando seu raio de ação em muitas outras cidades. E principalmente, os atos de violência urbana prosseguiram ao longo de vários dias. Isso permite concluir que, desta vez, uma grande massa de jovens se envolveu nessa onda de violência. A maioria nunca tivera contato antes com o anarquismo ou outra ideologia de esquerda. Por trás das barricadas, levantadas nos mais diversos lugares estavam até estudantes de 13 e 14 anos.
O governo valeu-se dos “encapuzados” para denunciar uma “ofensa à democracia”. “De qual democracia estão falando?”, rebateram os contestadores. Não há dúvida de que os colegiais e os universitários que aderiram aos protestos atacaram a polícia a pedradas. É verdade também que eles destruíram agências bancárias. Mas, alguns dias antes, esse governo, indiferente ao afundamento na miséria de centenas de milhares de gregos, havia oferecido aos bancos mais importantes do país um polpudo pacote de 28 bilhões de euros. Essas mesmas instituições delegam para certas companhias privadas de cobrança a tarefa de forçar o pagamento dos pequenos créditos — o que elas fazem lançando mão de insultos, ameaças e confiscos.
Apesar de se revelar violenta em muitos casos, a cólera da juventude nem por isso é politizada. Mas isso poderia ser diferente quando os próprios partidos, com a exceção dos da extrema esquerda, mantêm-se indiferentes às exigências do movimento? “Nada obtivemos. Nenhuma abertura de diálogo, nem mesmo uma troca de mensagens e menos ainda sinais de que conclusões foram tiradas do ocorrido. Eles agem como se tivessem optado por esperar que os jovens se cansem da ‘quebradeira’ para que a revolta seja encerrada”, comenta o analista Fanaras. Ele avalia ainda que muitos dos manifestantes terão de se conformar e voltar para casa com as mãos abanando... Até a próxima provocação ou pretexto.
Enquanto isso, outros serão atraídos pelos grupos violentos. “Este já havia sido o caso depois do assassinato de Michel Kaltezas”, confirma o ex-jornalista Alexandre Yiotis, um antigo anarcocomunista que no passado fora um membro ativo dessa vertente na França, na Espanha e na Grécia. E acrescenta: “Os estudantes revoltados naquela época foram reforçar, entre outras, as fileiras da organização terrorista 17 de Novembro”. Aposentado do ativismo, Yiotis aponta ainda que a maior parte das bandeiras erguidas durante as manifestações combinava as cores vermelho e preto, simbolizando a união do comunismo e do anarquismo.
Na propaganda de Estado que vem sendo divulgada pela mídia, sobretudo pela televisão, dois elementos chamam a atenção. O primeiro diz respeito ao papel dos imigrantes nos acontecimentos. Um dos comentários apontou que os saques das lojas incendiadas foram perpetrados por imigrantes esfomeados. Em outro programa foi dito que, na Ásia, “esta constitui uma prática comum: protestar, quebrar, furtar!” Ora, está claro que os manifestantes violentos foram recrutados essencialmente entre os autóctones, revoltados contra um sistema político corrupto. E se alguns ciganos tomaram parte nas depredações, tratava-se para eles, sobretudo, de vingar seus familiares, vítimas esquecidas da repressão policial.
O movimento ganha aliados em outros países da Europa. A razão é simples: essa é a primeira geração, desde a Segunda Guerra Mundial, a perder as esperanças de viver melhor que seus pais. E não se trata de um fenômeno exclusivamente grego...
Além disso, em certos lugares multidões esfomeadas de fato perpetraram saques, mas a maioria era exclusivamente grega. “Este é um fenômeno novo”, observa um estudante “Até então, nas manifestações, os estudantes e os delegados dos sindicatos ocupavam a frente do cortejo. Eles eram seguidos pelos partidos políticos, entre os quais a Syriza, que sempre vinha por último". "Depois apareciam os anarquistas e, quando o conflito começava, estes entravam nas fileiras da Syriza… E todo mundo levava uma surra. Agora, depois dos anarquistas, começou a aparecer um novo bloco: o dos esfomeados. Quer sejam imigrante, drogados ou desesperados, eles sabem que nas manifestações conseguirão encontrar comida”.
O poder e a mídia também lançaram mão de outra invenção: “cidadãos irados” teriam se organizado, entre si, para defender a lei e rechaçar os “quebradores”. Mas foi justamente o contrário que aconteceu: eles tentaram expulsar… os policiais militares! Pequenos comerciantes interpelaram os agentes da ordem, intimando-os aos berros a se retirar, enquanto transeuntes se jogavam sobre eles para libertar os estudantes presos.
Tomando consciência de que não era mais possível manter seus filhos em casa, pais e avôs foram para as ruas junto com eles para protegê-los. Um mundo às avessas… Será esse um movimento de longa duração? “Considerando que a crise econômica mundial em breve tomará conta do nosso país, que uma grande parte da juventude permanecerá marginalizada, que a situação da educação não irá melhorar tão cedo e que nós estamos muito longe de assistir ao fim da corrupção política, não faltará combustível para alimentar essa fogueira”, sublinha o jornalista e analista político Dimitris Tsiodras.
O movimento ganha aliados em outros países da Europa. A razão é simples: essa é a primeira geração, desde a Segunda Guerra Mundial, a perder as esperanças de viver melhor que seus pais. E não é um fenômeno exclusivamente grego.
[1] A ponto de considerar que a União Soviética morreu em 1956, o ano do 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, que foi o palco do relatório secreto de Nikita Kruchov e do começo da desestalinização.
[2] Com esse partido racista e antissemita, a extrema direita voltou a ocupar assentos no Parlamento, em 2007, pela primeira vez desde 1974.
Fonte: Le Monde diplomatique Brasil: Por que a Grécia está em chamas?
Acesse: http://diplo.uol.com.br/2009-01,a2732
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