Carta Aberta ao Governador do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, 02 de fevereiro de 2008.
Excelentíssimo Governador do Estado do Rio de Janeiro,
Senhor Sérgio Cabral Filho.
Cumprimentando-o fraternalmente,
Inicialmente, na condição de cidadão brasileiro, carioca, nascido no bairro de Botafogo, manifesto meu respeito e minha admiração por vossa excelência, especialmente pelas incansáveis declarações de amor ao nosso querido Estado do Rio de Janeiro, como também à nossa Cidade Maravilhosa. Compartilho integralmente esse sentimento patriótico que sob vossa liderança tão bem expressa e encarna os sonhos e as esperanças da população fluminense. E é por essa razão e também por acreditar que é possível construir um futuro melhor para as gerações vindouras que ouso escrever estas linhas:
Tenho 42 anos de idade e como servidor público estadual ocupo o cargo de oficial superior da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, com pouco mais de 24 anos de convívio na Corporação. Sou um dos 45 oficiais superiores que pediram dispensa de função, motivo pelo qual me sinto no dever e na obrigação de esclarecer ao senhor e à população do nosso Estado a razão desta atitude e os verdadeiros valores da anunciada “insubordinação”. Faço isso do fundo do meu coração, desprovido de qualquer tipo de ideologia ou de interesse de natureza política – partidária.
Ao longo da minha trajetória profissional sempre procurei pautar minha conduta dentro dos princípios da hierarquia e da disciplina, com lealdade, ética e responsabilidade. Nunca fui punido e sempre busquei, a despeito de todas as dificuldades e adversidades, desenvolver técnicas e práticas que pudessem subsidiar o desenvolvimento de políticas públicas progressistas objetivando a melhoria da qualidade de vida dos policiais e dos serviços prestados à população do nosso Estado. Tentei no decorrer da minha carreira, em diversas situações e ocasiões, sempre no exercício exclusivo da função pública, servir e proteger a sociedade brasileira, garantindo de forma igualitária o respeito à ordem democrática e aos direitos civis. Não obstante, sofri muito com a reação conservadora daqueles que no exercício do poder público insistiam e alguns ainda insistem em se locupletar do Estado republicano, com atitudes e gestos de subserviência e práticas corruptas, fazendo da coisa pública, solo fértil para beneficiar interesses privados. Contudo, mesmo diante de tamanha frustração nunca desisti de melhorar a instituição a que pertenço: A bicentenária Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Ainda não perdi a esperança.
Desejo uma instituição policial democrática, cidadã, que seja capaz de compatibilizar o respeito aos direitos civis com a efetividade da ação policial. Uma instituição que preserve o que há de melhor em suas tradições sem abdicar da modernidade. Uma instituição preocupada com a melhoria da qualidade de vida da sociedade fluminense. Uma instituição com homens e mulheres verdadeiramente compromissados com os valores institucionais, servindo e protegendo a população. Sei muito bem que essa é uma tarefa árdua e complexa posto que esses dilemas não possam ser resolvidos exclusivamente pela Corporação. Reconheço e rogo por uma reforma profunda na Corporação, porém faço o seguinte alerta: a crise do Rio instalada na Polícia Militar é conseqüência de uma outra crise decorrente da falta de uma política de segurança pública, nacional e estadual, objetiva e consistente. Nesse sentido, senhor Governador, a crise também é reflexo do atual sistema nacional de segurança pública.
Mesmo não pertencendo ao Grupo dos Barbonos ou ao Grupo dos 40 da Evaristo, manifestei e manifesto meu apoio irrestrito à iniciativa dos mesmos pelo fato de reconhecer nos oficiais que os compõem a necessária legitimidade moral para protestar contra as condições de trabalho a que estão submetidos oficiais e praças da Corporação e reivindicar melhores salários.
Exponho a vossa excelência, por questão de dever e honra os principais fatos e motivos que nortearam a minha decisão:
No dia 27 de janeiro do corrente o jornal o dia divulgou uma entrevista com o Secretário de Segurança Pública que declarou que a manifestação dos policiais militares na caminhada cívica é um ato de “insubordinação”. Declarou ainda que a Polícia Militar pelo fato de ser uma instituição de baixa credibilidade não haveria legitimidade no pleito.
Estimado senhor governador, em que pese o fato dos policiais militares serem considerados servidores militares estaduais, o serviço prestado à população fluminense, sem qualquer sombra de dúvidas é de natureza civil. O ato legítimo promovido no dia 27 foi um ato cívico, portanto, em total consonância com a natureza do serviço prestado à população. Esclareço que o policial militar, nesse contexto, é também um cidadão pleno de acordo com a Constituição Cidadã de 1988.
De acordo com os seus organizadores e eu endosso o que foi dito a manifestação foi e seguirá sendo ordeira. Com relação à falta de credibilidade talvez seja importante, conveniente e oportuno lembrar que nos últimos quatro anos mais de 586 policiais perderam suas vidas por menos de R$ 30,00 por dia. Outro aspecto não menos importante é o fato de essa manifestação estar inserida num contexto maior, num processo histórico que teve início há mais 25 anos e que agora alcançou seu apogeu em razão do comprometimento de oficiais de todos os níveis hierárquicos, bem assim de praças e familiares.
Não se pleiteia o absurdo nem tampouco o impraticável. Pleiteia-se apenas a ratificação do compromisso que vossa excelência assumiu durante a campanha para o governo do Estado. Uma planificação objetiva e consistente para que o Polícia Militar efetivamente sofra uma profunda reforma institucional, incluindo-se nela a valorização do profissional policial militar, o resgate de sua dignidade, respeito e auto – estima. Não se espera soluções mágicas. Estou consciente que o processo poderá transcorrer até o fim do seu mandato ou até mesmo alcançando o próximo mandato. Existem inúmeras possibilidades para serem estudadas e discutidas. Nesse momento tão delicado de nossa história é necessário humildade e tolerância para que através do diálogo possamos juntos encontrar a melhor fórmula para avançarmos na construção de uma sociedade melhor.
Senhor Governador, quais seriam então os verdadeiros valores da “insubordinação”? Em outras palavras, por que os policiais militares reivindicam melhores condições de trabalho e salariais? Por dever de justiça, reconheço as pressões que o rodeiam e gostaria de registrar que vossa excelência, na condição de autoridade máxima do poder executivo do Estado do Rio de Janeiro e de comandante supremo da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, continua gozando do meu respeito e da minha confiança.
Ao longo das últimas décadas a segurança pública no nosso Estado vem sendo vilipendiada por autoridades omissas e permissivas. O processo histórico de sucateamento moral e material da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro é apenas uma faceta dessa triste realidade.
No nosso amado Estado do Rio de Janeiro, no âmbito político, econômico e social, está em curso um processo de privatização da segurança pública. Trata-se do financiamento privado da segurança pública. Contrariando a Lei, instrumento maior do policial, alguns policiais militares são compelidos pelo sistema a buscarem alternativas de trabalho para complementar a renda – algumas delas clandestinas – através do famigerado “bico”. Nesse contexto, a omissão e a permissividade das autoridades constituídas se convertem em cumplicidade com a ilegalidade – esse é um dos verdadeiros valores da insubordinação. O resultado, senhor governador, é desastroso: submetido a um regime de 12 horas de trabalho – em média a jornada diária de um policial não deveria superar sete horas – o policial militar divide seu tempo entre o oficial e o oficioso. Trabalha cansado, estressado, desmotivado, descompromissado, enfim, desengajado e desarticulado da vida familiar, social e profissional. Enfim, uma dinâmica de trabalho perversa que se constitui em risco de morte em potencial para ele mesmo – o policial, seu companheiro de trabalho e a população de uma forma geral. Forja-se então o paradoxo da segurança pública, a insegurança pública torna-se sua moeda corrente, pois o medo e a demanda por serviços de segurança privada aumentam o mercado.
Senhor Governador estamos falando de caos, estamos falando da verdadeira insubordinação. Somos insubordinados senhor Governador pela complacência e irresponsabilidade com que tratamos nossos subordinados, descumprindo a Lei e inventando escalas para atender demandas e expectativas do setor privado. Não posso deixar de elogiar vossa excelência pela atitude de coragem em não admitir a interferência de políticos nos processos internos de nomeação de comandantes na Corporação. Todavia, temo pelos desdobramentos da crise na segurança pública, pois como disse anteriormente o processo de privatização avança.
Outro importante valor da insubordinação, senhor Governador, são as péssimas condições de trabalho do policial. Para que vossa excelência tenha uma idéia da realidade se os policiais militares agissem com o rigor da Lei nenhuma viatura sairia para o patrulhamento, pois estariam todas em desacordo com o Código de Trânsito Brasileiro e as Resoluções do DETRAN. Somos insubordinados por manter as viaturas rodando nessas condições, sempre pensando em não deixar nossa população sem assistência. Poderia continuar falando de outros valores da insubordinação, tais como a péssima qualidade dos cursos de formação e aperfeiçoamento das praças, as péssimas condições sanitárias das unidades de polícia militar, da precariedade do sistema de saúde, do desvio de finalidade na aplicação do valor da etapa destinada à alimentação dos policiais militares, da falta de condições materiais e humanas adequadas para um efetivo controle de pessoal e planejamento operacional, da falta de equipamentos individualizados de radiocomunicação e de proteção etc. Enfim, poderia estar citando os inúmeros valores da insubordinação para o que o senhor perceba que o ato do dia 27 vai totalmente de encontro a esses valores.
Senhor Governador, diante desses verdadeiros valores da insubordinação o ato do dia 27 foi um ato de amor ao Estado do Rio de Janeiro, um ato de respeito à população do nosso Estado, em particular às famílias dos policiais militares que morreram para servir e proteger a sociedade. Queremos uma polícia cidadã, uma polícia que valorize a vida, uma polícia regida pelos princípios democráticos da Lei. Para que isso ocorra é imprescindível reformar o sistema de segurança pública e as instituições que o compõe. Entretanto é importante frisar que o primeiro passo consiste na valorização do profissional de segurança pública, verdadeiro patrimônio das instituições policiais. Estado, Polícia e Sociedade devem caminhar juntos nessa jornada. Resgatar a dignidade do policial constitui objetivo de primeira magnitude. Nesse desafio, como cidadão e como servidor do Estado do Rio de Janeiro, me coloco à sua inteira disposição para iniciarmos juntos nossa caminhada cívica.
Antonio Carlos Carballo Blanco
Cidadão Fluminense, Policial do Estado do Rio de Janeiro.
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