Rio de Janeiro: Política de Segurança ou Política de Guerra?
Tenente – Coronel de Polícia Antonio Carlos Carballo Blanco
Desde o início da década de 80 do século passado, há aproximadamente 30 anos, o Brasil e, particularmente, o Rio de Janeiro sofre com a escalada desenfreada da violência e da criminalidade. Muito possivelmente, existem inúmeras causas, de todos os matizes, concorrentes e determinantes, para ajudar a explicar a eclosão desse fenômeno normalmente travestido através do binômio medo e insegurança.
Antes de avançar na questão suscitada pelo título que precede estas primeiras linhas, é muito importante, conveniente e oportuno destacar os seguintes esclarecimentos: infelizmente, não há, no Brasil, um sistema de segurança pública. A simples idéia de sistema de segurança pública pressupõe a existência de um objeto comum, suprapartidário, e de instituições minimamente organizadas, com padrões mínimos de qualidade e de interface com vistas ao compartilhamento de processos de interesse comum. Pressupõe também a existência de um modelo de organização, objetivo e consistente, entre todos os entes federativos, União, Estados e Municípios.
Em primeiro lugar, no Brasil, o tema segurança pública vem sendo tratado ao longo das últimas décadas de maneira inadequada. A omissão e a permissividade dos nossos governantes têm contribuído para que o tema não seja tratado como verdadeira questão de Estado, acima dos eventuais interesses partidários. Por outro lado, inexiste no âmbito dos entes federativos e de suas instituições de segurança uma linguagem comum, básica, capaz de uniformizar procedimentos e guiar planejamentos numa perspectiva de médio e longo prazo.
A existência de uma legislação anacrônica aliada a um sistema obsoleto de funções policiais bipartidas também concorre para a pouca ou quase nenhuma efetividade no funcionamento das instituições policiais. Nesse contexto, o caso do Rio de Janeiro é bastante emblemático por sua singularidade e ajuda a compreender um pouco do drama nosso de cada dia.
É possível afirmar, portanto, que há décadas não há no Brasil nem tampouco no Rio de Janeiro uma verdadeira política de segurança pública. O que existe na prática são surtos ou espasmos seletivos de contenção da violência armada perpetrado com o uso da própria violência estatal.
E o que isso significa no dia a dia do cidadão? Significa muita coisa, a saber: a incapacidade do Estado em prover de maneira democrática serviço de segurança pública para todos, durante as 24 horas do dia; significa que o Estado não valoriza o profissional de segurança pública, seja do ponto de vista salarial, seja do ponto de vista das condições objetivas de trabalho; significa que não existe política de segurança pública, posto, que não existe um sistema capaz de integrar os diversos níveis de prevenção entre os diversos entes; significa que não existe um protocolo do uso da força claro, objetivo e consistente, suficientemente capaz de tornar a repressão efetivamente qualificada; significa que as instituições movem-se por seus próprios interesses corporativos ou por interesses pessoais; significa, em suma, que o modelo atual está falido.
Muitos podem estar agora mesmo fazendo a seguinte pergunta: E a política de enfrentamento, tão alardeada pelo governo e pelos veículos de comunicação social? Infelizmente, devo dizer que enfrentamento não é nem nunca será uma política pública.
Pode ser uma estratégia, uma tática e até mesmo uma obrigação legal, mas, com certeza nunca será uma política, pois não define de forma ampla e substantiva o que dever ser feito para melhorar a segurança pública como um todo, em todos os seus níveis de abrangência e complexidade, da prevenção à repressão, do favelado ao morador da classe A. Resta-nos então convencionar o que está de fato ocorrendo no Rio de Janeiro.
Diante dos fatores históricos que contextualizam o embate entre policiais e traficantes homiziados nas favelas ao longo dos últimos anos, com incursões e ocupações territoriais episódicas, ousarei definir o que se sucede nas últimas décadas como tática operacional de contenção seguida do processo de financiamento privado da segurança pública, tema este que será tratado especificamente em outro artigo, oportunamente, de maneira mais aprofundada.
O Art. 144 da Constituição da República (CR) define segurança pública como sendo um dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Independentemente do órgão de segurança pública incumbido dessa ou daquela missão não resta qualquer sombra de dúvida que preservar a ordem pública, bem assim preservar as condições objetivas para que cidadãos e cidadãs e respectivo patrimônio estejam são e salvos de qualquer perigo.
O que estamos assistindo nos últimos anos pode ser traduzido, grosso modo, como um verdadeiro genocídio de jovens e de policiais. As sucessivas e malogradas táticas operacionais de contenção não surtiram e não surtirão o efeito da pacificação. Pelo contrário, os procedimentos de conduta tática e até mesmo o emprego tático do armamento utilizado em determinadas situações estão em total desacordo com o que de melhor existe na técnica policial, indo inclusive de encontro ao preceito maior da CR, que é o de manter as pessoas e seus respectivos patrimônios a salvo de qualquer perigo.
Também compõe essa perversa equação a existência de uma cultura bélica no seio das organizações policiais que privilegia a idéia de força em detrimento da idéia de serviço e reforçam algumas das justificativas para os casos de desvio de conduta, violência arbitrária e abuso do poder, alimentadas constantemente pelo forte sentimento de impunidade em razão das ridículas taxas de elucidação de delitos.
Há muito tempo que as forças estaduais de segurança não conseguem dar conta da situação de grave perturbação da ordem pública que assola o Estado do Rio de Janeiro e, em particular, a Cidade do Rio de Janeiro. Por inépcia, omissão, permissividade e, principalmente, por vaidade das autoridades públicas, não houve até o presente momento nenhum gesto nobre em reconhecer a falência das instituições policiais do Rio de Janeiro e a sua incapacidade de lidar com a complexa dinâmica criminosa gerada a partir do tráfico de drogas ilícitas e do tráfico ilícito de armas. De fato nosso cobertor é muito curto.
Mas, então, o que fazer diante desse cenário desolador? Diria que a situação do Rio de Janeiro chegou a um ponto de tamanha gravidade que não resta alternativa senão a decretação do estado de defesa, uma medida democrática e legalmente amparada nos termos da CR. Não é mais possível tampar o sol com a peneira. Situações como a do Complexo do Alemão, da Rocinha, de Manguinhos e de outras comunidades populares, principalmente devido as distintas particulares, especialmente, o domínio territorial armado imposto por grupos de criminosos associados ao tráfico de drogas ilícitas com grave comprometimento da ordem pública configuram plenamente, nos termos da Seção I, Capítulo I, Título V da CR, a necessidade da defesa do Estado e das Instituições Democráticas.
Vislumbra-se, portanto, que de acordo com o Art. 136 da CR, o Presidente da República é o principal responsável pela decretação do estado de defesa, cuja fundamental condição objetiva está dada e devidamente enquadrada: Art. 136. O Presidente da República pode ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.
Nesse processo de pacificação e restauração da ordem democrática em algumas das comunidades populares do Rio de Janeiro a presença das forças armadas é fundamental, tanto pela sua excelente capacidade de mobilização recursos, humanos e materiais, quanto pelo domínio técnico e nível de adestramento de todo o efetivo mobilizado. O conceito da operação deve estar focado no esforço de preservar vidas, desativar “minas humanas” prestes a explodir e desmobilizar civis armados, mormente recrutados para formar fileiras junto ao “exército do tráfico de drogas”.
A participação das forças armadas, com o indispensável suporte das unidades especiais da polícia militar, garantirá, mediante superioridade numérica, a presença efetiva da tropa do Estado em toda a extensão territorial considerada, neutralizando eventuais reações de modo a reduzir potencialmente a possibilidade de reações indesejáveis e de se produzir vítimas inocentes. É parte de uma política maior para o verdadeiro enfrentamento da insegurança pública.
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