Por Antonio Carlos Costa
Presidente da ONG Rio de Paz
Os números da violência no Rio de Janeiro têm rosto. Por trás das estatísticas há uma multidão de gente que se foi e de gente que ficou. Homens e mulheres cujas vidas estão marcadas para sempre. Vivemos anos de insanidade, indiferença e maldade. Passo agora ao relato de parte do que vi e ouvi nos cemitérios, hospitais e lares enlutados que tenho visitado, desde que comecei a ver o que antes apenas tomava conhecimento de ouvido.
GABRIELA SOU DA PAZ
O meu primeiro encontro com o fundador do movimento Gabriela Sou da Paz deu-se em razão de um pedido que havia feito ao meu amigo de longa data, Jorge Antonio Barros. Estava começando a luta do Rio de Paz e queria saber quem era carioca do bem e com quem poderia contar. Ele sugeriu que procurasse o Carlos Santiago. Acontece que o Carlos Santiago e a Cleide Prado, os pais da Gabriela, morta numa troca de tiros no metrô da Tijuca, não são de fazer com que as pessoas fiquem com pena deles. São capazes de rir, mantêm-se incansavelmente nas ruas na luta contra a impunidade e quase todos os dias levam palavras de encorajamento para pessoas que enfrentaram o drama pelo qual passaram. Porém, aqui e ali, ambos deixam passar algo da dor latente dos seus corações. Em um encontro sobre violência no ano passado na Casa Rui Barbosa, para o qual fomos convidados a falar como representantes e militantes da sociedade civil, eu o ouvi dizer para todos: “Engana-se quem pensa que o tempo ajuda um pai esquecer-se de um filho que foi assassinado. A morte da minha filha Gabriela parece que ocorreu ontem”, afirmou Santiago. No nosso primeiro contato, no centro do Rio, ele já dissera para mim: "Levaram meu maior bem".
A VIÚVA QUE PERDEU SEU ÚNICO FILHO
Conheci a dona Zely no enterro do seu filho, que fora assassinado no Andaraí. Corria a cerimônia fúnebre quando tomei fôlego e aproximei-me da mãe da vítima. Procurei me identificar e ela prontamente me recebeu. Eis o que ela falou para mim ao lado do caixão do seu filho: “Esse filho foi fruto de uma espera de 18 anos. Eu não conseguia engravidar. Quando o meu filho tinha 8 meses de vida meu marido morreu”. A morte do seu filho representou para ela - a perda do filho único de uma viúva. Quando o caixão estava para ser fechado eu a ouvi dizer: “Eu te amo meu filho. Você foi embora cedo, mas valeu a pena ter tido você”. Outro dia ela deixou um recado aos prantos na minha secretária eletrônica. Ela havia acabado de descobrir a autoria do crime - a nora é a acusada de ser a mandante - e percebia a lentidão da justiça.
A ROSA 6.001
Era o final de 2007. O Rio de Paz havia acabado de realizar um protesto na praia de Copacabana. Criamos a imagem surreal das 6.000 rosas penduradas de cabeça para baixo a fim de apontarmos para o absoluto absurdo das 6.000 vítimas de homicídio (que na verdade foram aproximadamente 10.000, pois só trabalhamos naquela data com homicídio doloso). Naquele mesmo dia morria, numa das trocas de tiros entre policiais e traficantes, a menina Fabiana, que brincava dentro de casa na frente do avô.
Cheguei ao cemitério do Caju quando o caixão já se encontrava do lado de fora da capela. A primeira cena com a qual me deparei foi a da avó gritando: “Fabiana, sai daí. Vamos para casa”. Ela gritava como se a sua voz pudesse dar vida ao corpo da neta. Aproximei-me da mãe. Tentei consolá-la. Ouvi dos seus lábios, em meio ao seu pranto, o apelo desesperado de uma mãe que aguardava o milagre que não aconteceu e que eu não podia realizar: “Moço, tira a minha filha dali. Ela não é para estar ali. Eu tinha um casal de filhos, agora só tenho um filho”. Em seguida, desmaiou.
A Fabiana é enterrada e no caminho de volta vejo-me ao lado de dois homens inconsoláveis. Aproximo-me deles. Identifico-me. Eles pronta e educadamente me recebem. Descubro que estou diante do pai e do avô que presenciou a cena do crime. Ouço o seu relato dramático: “No dia da sua morte a minha neta viu o seu protesto na televisão. Ela comentou com a minha esposa. ‘Veja vovó, 6.000 rosas porque 6.000 pessoas foram assassinadas”. Ao que a avó respondeu: ‘É minha filha, nós estamos vivendo em um mundo muito mau’. A avó não poderia sequer imaginar que naquele mesmo dia, dentro de algumas poucas horas, a sua neta haveria de fazer parte da trágica estatística. Ao saber da morte da neta, a avó no seu pranto falou: “A minha neta é a rosa 6.001”. O avô contou-me o que aconteceu no trajeto para o hospital. Não foi fácil sair da comunidade, pois alguém furara com tiros os pneus do carro que chegara para prestar socorro. A menina morreu em meio à sua inocente súplica, baseada no que Cristo ensinou aos seus discípulos: “Pai nosso que estás nos céus...”.
PERDEMOS CANTO DO SABIÁ
Era uma terça-feira à noite e uma advogada da OAB solicitou-me por telefone que comparecesse ao enterro de um jovem que fora assassinado por policiais militares. Chego ao enterro no dia seguinte e deparo-me com um ônibus repleto de jovens evangélicos, experimentando um misto de choque e incompreensão, pois morrera um rapaz excelente, membro de uma banda de música que gostava de cantar hinos de louvor a Deus. Aproximo-me do pai da namorada, um policial, que pôde testemunhar para mim sobre o caráter do rapaz: “Eu jamais deixaria minha filha de 15 anos namorar um rapaz em quem eu não confiasse. Ele era um rapaz maravilhoso”. A mãe da moça declarou: “Quando por algum motivo falávamos alguma coisa para orientá-lo ele costumava ouvir abaixando a cabeça”. Houve um pastor que disse para mim: “Eu conheço toda a família dele. O menino era bom. O que fizeram com ele foi uma maldade". Um outro pastor afirmou em tom de desabafo: "Não agüento mais fazer enterro de gente assassinada”. O amigo de infância declarava: “Eu nunca o vi envolvido com coisa errada”.
Aqueles policiais mataram William de Souza Marins, um menino inocente de 19 anos. Ficaram para trás um casal de irmãos inconsoláveis e os pais. Gente mansa e de coração humilde. A mãe lamenta a morte do sabiá de Deus (sabiá era o seu apelido), pois segundo ela o filho passava o dia inteiro cantando os hinos evangélicos que conhecia. Foi essa a pessoa que os policiais mataram, com um tiro na perna, outro no peito e um no alto da cabeça, fazendo-se de surdos para os apelos da vítima: “Eu sou evangélico, moro na comunidade”. Como se não bastasse isso, arrumaram uma mochila e nela colocaram 158 papelotes de cocaína, uma pistola 765 e uma granada, a fim de caracterizar a morte como resultante de um confronto entre polícia e marginal.
A AGONIA NA ANTE-SALA DA MORTE
Era uma manhã quando ao consultar meus e-mails descubro que havia um recado do amigo coronel da Polícia Militar, Carballo. Estava escrito algo mais ou menos assim, “Ouça isso”. Era a entrevista do Paulo Roberto, pai do menino de 3 anos, morto na frente da mãe por policiais militares. Eu estava de cama e exausto das campanhas do Rio de Paz. Havia separado aquele dia para ficar em casa. Mas não pude. As declarações do pai me levaram a correr para o hospital onde ele e seu filho (já em estado de morte cerebral) se encontravam.
Apresento-me aos familiares que tratam de conduzir-me ao pai. Conversamos por aproximadamente uma hora. Procuro oferecer-lhe a única consolação de que dispunha: “Cristo disse no evangelho: ‘Deixai vir a mim os pequeninos, e não os embaraceis, porque dos tais é o reino de Deus’”.
Subo para o quinto andar do hospital onde se encontrava o menino, familiares, amigos e a mãe. Trato de consolá-la. Ela apresenta-me o relato dos seus últimos momentos ao lado do filho: “Quando vi o que estava acontecendo eu pedi para que ele se agachasse. Ele tão somente dizia, por que mamãe, por que mamãe?” Depois, o corpo desfalecido do filho, a roupa encharcada do sangue daquele que ela mesma gerara e a declaração do médico de que o filho havia levado um tiro na cabeça, que entrara pela nuca e alojara-se na fronte.
Alguém aparece e pede para que nos dirijamos para uma sala a fim de fazermos uma prece. Eu não podia ter idéia de que a sala nada mais era do que o exato local onde o João Roberto se encontrava. A mãe só gemia. O pai, aos prantos, em voz alta, dizia: “Meu filho, como eu te amo. O que fizeram com você? Eu nunca vou te esquecer”. E lançou-se sobre o leito no qual o menino estava. A avó paterna levanta o lençol que cobria o corpo do João Roberto, pelo qual podia-se ver que ele ainda respirava, e exclama: “Veja, ele está cheio de fios no seu corpo”. Ao fundo, os médicos assistiam todo o horror estupefato e visivelmente arrasado.
Essa semana, no dia 29 de Julho, eu estive na casa dos pais do João Roberto, na Tijuca. Estava programada para aquele dia uma festa que não pôde ser realizada. O momento de alegria para o qual o pai se preparara fazendo hora extra no táxi a fim de cobrir as despesas que excedia o que seu salário regular permitia realizar. Era para ser comemorado o aniversário de 4 anos do João Roberto. Passei ali 3 horas, tentado enxugar as lágrimas dos pais, da avó materna e as minhas. Era o segundo dia mais difícil de suas vidas.
O ENTERRO DO POLICIAL MORTO NA FONTE DA SAUDADE
O envolvimento cívico com essa causa, tem colocado-me em contato com vários policiais, civis e militares. Meu pai foi policial civil e terminou sua carreira na Polícia Federal. Ele morreu faz 3 anos. Deixou para uma viúva e três filhos um modesto apartamento de dois quartos no bairro de Santa Rosa em Niterói. No encontro com esses policiais tenho reencontrado o meu pai.
A morte ignóbil sofrida recentemente por dois policiais na Fonte da Saudade, levou-me mais uma vez para as ruas e para o cemitério. Fomos para a Fonte da Saudade onde fixamos no local do crime, duas cruzes com os nomes dos policiais e uma faixa com a seguinte frase: “Mataram aqui dois seres humanos que trabalhavam em condições desumanas”. Antes disso, porém, participara da cerimônia que me fez irromper em prantos. O enterro de um dos policiais. Emoção, revolta e dor eram visíveis nas fisionomias dos oficiais tarimbados ali presentes. O comandante do policial morto chorava.
Vem a esposa. Ao ver o corpo do marido no caixão sente ânsia de vômito. Ela sai. Retorna. Só que agora com os filhos. A filha de 13 anos entra e, ao levantar a cabeça e identificar a face do pai morto, no caixão, recua e anda para trás, fugindo da cena que seus olhos recusava-se a admitir. Começa a gritar: “Meu pai, quem matou meu pai?” O filho de 6 anos dá a volta e com o rosto todo molhado de lágrimas coloca-se ao lado do corpo do pai e o afaga. Um oficial da Polícia Militar, tido como um homem duro, sai visivelmente comovido e transtornado. Eu o faço parar e falo-lhe ao ouvido: “Procure administrar tudo isso com amor”.
Esse é o Rio de Janeiro desse início de século XXI. O Rio de Janeiro de sempre. Rio de sangue. Violento. Sedento de morte. Que faz seus moradores viverem ao mesmo tempo perante o cenário geográfico mais exuberante e o contexto social mais aterrorizante. Por que tantas mortes e como evitá-las? São muitas as respostas. Nós já as conhecemos. O Rio de Janeiro não precisa de mais análises sobre segurança pública. Muito menos sair em busca de soluções, pois essas também já existem. Tudo isso tem sido estudado exaustivamente e com competência. Poderia mencionar vários documentos com propostas exeqüíveis para a diminuição da violência. O que nos falta? Seja qual for a resposta que você e eu venhamos a dar para essa pergunta vital, uma coisa é certa: ela não deve se restringir apenas à vida dos outros, mas deve envolver a nossa vida. A sua e a minha - pois todos somos moradores desse estado, e todos, de uma forma direta ou indireta, podemos colaborar para o mal ou para o bem do lugar onde moramos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário