JORNAL EXTRA, Blog Casos de Polícia, 12/12/2008.
João e Matheus: apóstolos da dor.
Por Ana Paula Miranda
A semana em que se comemorou os 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos, se é que temos o que celebrar, foi marcada por dois eventos distintos que envolvem a morte de crianças de forma violenta na cidade do Rio.
A morte do menino Matheus provavelmente por policiais militares que não tinham autorização de estar ali naquela hora, e a absolvição pelo júri do policial militar que atirou no carro onde estava o menino João Roberto. Certamente, alguns dirão que os casos não têm relação nenhuma. Peço licença antecipada para discordar.
Fazendo uma leitura dos fatos, podemos notar que os contextos são distintos, um morreu numa rua considerada área "residencial" da Tijuca, o outro morreu na favela, entidade genérica, que certamente não é considerada área "residencial", mas uma ocupação!
Aqui já temos o primeiro problema que gostaria de trazer à reflexão, será que se a morte de João Roberto tivesse ocorrido em uma favela da Tijuca, a comoção social teria sido a mesma? Alguém lembra quem foi o Ramon Fernandes da Silva? E Jorge Kauã Silva de Lacerda? Ambos eram meninos, ambos foram mortos na favela, nos dois casos a circunstância da morte foi uma ação policial.
Creio que muitos não vêem a morte de favelados como um problema tão grave, afinal a população carioca já naturalizou que na favela o confronto é inevitável. Temos então o nosso segundo problema, o que faz uma viatura de outro batalhão sozinha numa área em que as autoridades são incansáveis em afirmar que é de "alto risco"?
Não acredito que estivessem testando alguma metodologia 'nova' de policiamento comunitário. Também duvido que estivessem fazendo um atendimento de emergência, e obviamente também não estavam ali para realizar nenhuma operação planejada. Peço que os leitores ajudem a cobrar esta resposta às autoridades.
Mas o que há em comum nessas duas 'fatalidades'? O primeiro ponto é que não são fatalidades, ninguém está marcado pelo destino a morrer assassinado por representantes de instituições públicas que têm o dever de garantir sua proteção.
O segundo é que há um pressuposto ideológico por trás dessas e de várias outras mortes no Rio, ou seja, estamos diante de uma indústria da carnificina humana. Mata-se em série, morre-se em série.
Quando uma sociedade permite de forma tácita, ou por omissão, que os órgãos responsáveis pela produção de sua segurança podem matar à vontade, estamos diante não de ações isoladas, mas sim da construção de um discurso e de várias práticas, que preferimos fazer de conta que não vemos, afinal não sentimos essa dor. Foi só mais um na estatística. E quem liga para a estatística?
O terceiro ponto que gostaria de ressaltar é que felizmente ainda há quem se incomode com as mortes. As pessoas não estão tão passivas ou anestesiadas como alguns querem nos fazer pensar. A semana também foi marcada por diversas manifestações que buscam sensibilizar os 'outros' de que quando alguém morre de forma violenta e quem apertou o gatilho foi o Estado, todos nós somos atingidos.
Se a Alessandra, mãe de João, não teve o direito de se identificar, quem mais poderá fazê-lo? Não se pode aceitar que 17 tiros de fuzil seja entendido como estrito cumprimento do dever.
Também não se pode aceitar que um menino de 8 anos não possa ir comprar pão na cidade onde nasceu. É preciso que todos compreendam que se o Matheus não pode ir à padaria, outros filhos também não poderão.
Isso é que é cidadania! Isso é direito humano. Coisas simples e cotidianas. Se não entendemos isso, estaremos condenados à morte em vida.
João e Matheus eram dois meninos, eles não foram mártires, eles não se sacrificaram em busca de nada, morreram por nada. Até agora foram apenas apóstolos da dor. Desejo que ao menos possam ser transformados em apóstolos da justiça.
Mas para que haja justiça é preciso que possamos responder a uma pergunta: por que se mata tanto?
Fonte: http://extra.globo.com/geral/casodepolicia/anapaula/post.asp?cod_post=147015
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