Conversa com Bachelard...
Num desses dias, angustiado com as altas taxas de criminalidade e com os descaminhos com que a política de segurança pública vem sendo conduzida em todos os níveis de governo, apelei para o ser supremo, pedindo a ele que interviesse nos corações e mentes de nossos governantes, iluminando com sabedoria e razão, as decisões políticas que efetivamente poderiam fazer a diferença. Pedi também uma intervenção divina no sentido de agraciar os gestores da área de segurança pública com a superação de suas próprias vaidades e com a libertação do próprio espírito em relação às velhas práticas empíricas, amoldadas em padrões paradigmáticos que se convertem em doutrinas dogmáticas, muito distantes das verdadeiras demandas e expectativas da sociedade, longe, portanto, da possibilidade concreta de intervir positivamente sobre a realidade.
Nessas andanças metafísicas, qual não foi o meu espanto ao reencontrar-me com um velho amigo francês chamado Gaston. Extremamente solidário com a causa por mim pleiteada e numa clara tentativa de trazer um pouco de conforto a minha pobre alma, Gaston pediu licença, como toda a autoridade de quem há pouco tinha enfrentado um dilema similar, e me disse com toda ternura:
Meu nobre amigo, antes de tudo fique tranqüilo e, por favor, não se aflija com as artimanhas do saber, pois o conhecimento é dinâmico e inerente ao ser humano. Tampouco se preocupe tanto com aquilo que é empírico, posto que é tão somente a expressão de um conhecimento diferente daquele que costumamos chamar de científico. São conhecimentos diferentes, obtidos por métodos distintos. Não há, portanto, concorrência equivalente entre ambos. O que de fato é bastante preocupante, e nesse ponto concordo plenamente contigo no que concerne ao seu sentimento de aflição, é a dificuldade e a lerdeza que se verifica no tratamento político que é dado pelos governantes para viabilizar a superação de determinados obstáculos epistemológicos que impedem o desenvolvimento científico dos profissionais das organizações policiais aí no Brasil. É bom ressaltar que os obstáculos em si não são o problema, haja vista que sem eles não haveria estímulo ao desenvolvimento científico. O principal problema reside na pusilanimidade com que autoridades do Poder Público tratam essa questão. E é justamente sobre isso que gostaria de tecer algumas considerações: independentemente do reconhecimento sobre a existência de fatores que obstaculizam a produção do conhecimento científico, mas que podem ser superados, conforme escrevi alguns anos atrás, existe outros que estão diretamente afetos a uma decisão política, no nível governamental ou institucional. Em outras palavras, o desenvolvimento do espírito científico dos profissionais de segurança pública não se resume à mera superação dos obstáculos epistemológicos. Demanda uma política pública de formação desse capital humano, com investimentos do Poder Público no que tange à capacitação e aperfeiçoamento dos seus servidores, esforço qualificado de estudo e de pesquisa por parte dos policiais e, principalmente, coerência axiológica entre teoria e prática. Sobre a superação de alguns obstáculos epistemológicos no campo da segurança pública, levando-se em conta o marco legal brasileiro e outros traços que permeiam a cultura organizacional das instituições policiais, diria o seguinte: em linhas gerais, o modelo adotado pelo Brasil de funções policiais bipartidas ensejou a configuração de dois pólos de atividades que caracterizam o trabalho policial. O primeiro pólo, exercido nas ruas pela Polícia Militar está baseado no paradigma militarista e o segundo, exercido no cartório pela Polícia Judiciária, está baseado no academicismo jurídico. Enquanto no primeiro prevalece o dogma doutrinário da força como expressão predominante da ação policial e o dogma doutrinário da hierarquia e da disciplina militar como expressão da ordem, o segundo abdica da vocação original do trabalho policial investigativo, orientado para a produção de provas e se dedica, seguindo o dogma doutrinário do direito, a administrar diferentes formas e leituras da produção da verdade. Meu caro, a partir dessa sucinta análise preliminar, ouso afirmar que: as expressões dogmáticas que governam o modo de fazer polícia no Brasil e, portanto, o modo de se fazer política, castra qualquer possibilidade de inovação e de ruptura com a inércia institucional. É muito difícil teorizar em ambientes políticos- institucionais dominados pela lógica dogmática que se exterioriza na forma recorrente de velhos paradigmas. Nesse contexto, meu velho amigo, é impossível fazer ciência, haja vista que dogmas e paradigmas impedem que seja estabelecida uma legitima relação entre sujeito e objeto, que são as partes constituintes da matriz essencial para a produção do conhecimento. Se a existência dos obstáculos epistemológicos, compreendidos estes como fatores inerentes e intrínsecos ao próprio pesquisador já constitui por si só um ponto de superação que precisa ser trabalhado em prol do desenvolvimento do espírito científico, o que dirá no caso do investigador que se encontra imerso num ambiente institucional de inércia. Nesse caso, como disse anteriormente, a questão é política e como tal deve ser tratada. Não obstante o reconhecimento dessa dificuldade extrínseca ao desenvolvimento do espírito científico, é muito importante, conveniente e oportuno destacar que o principal fator de superação desses obstáculos intrínsecos, reside basicamente na determinação e na constância do pesquisador fundamentalmente em face da relação estabelecida entre sujeito e objeto. Nesse sentido, meu amigo, como sugestão é necessário que se inicie aí no Brasil, desde já, uma campanha para pressionar os governos e para inflamar mentes e corações com vistas à ruptura desse estado de inércia. Destarte, de suma importância para o desenvolvimento do espírito científico nas organizações policiais brasileiras, é que, no âmbito da experiência comum, haja a contradição, que se critiquem e se refutem os dogmas e os pré-conceitos. Do que escrevi sobre os obstáculos ao desenvolvimento do espírito científico, lembro-o das seguintes questões que convém atentar: 1) pelo fato da experiência primeira estar imune a críticas ela mesma pode se converter no primeiro obstáculo ao desenvolvimento do espírito científico; 2) uma leitura equivocada do conhecimento geral enquanto doutrina do saber também pode se converter em obstáculo ao desenvolvimento do espírito científico; Faço este alerta em nome da razão e da premente necessidade de libertar as academias e os centros de formação policial dos grilhões imponderáveis de verdades e saberes tidos como absolutos e incontestáveis. Nesse caso, por exemplo, é recomendável, que no âmbito do processo de ensino-aprendizagem a que estão submetidos todos os policiais, especialmente em virtude da intensa variedade de disciplinas e da extrema complexidade de situações que caracteriza a dinâmica do trabalho policial, sobretudo, na dimensão cotidiana da gestão do serviço e do emprego de técnicas avançadas mediação de conflitos e de administração do uso legítimo da força legal, que a perspectiva holística esteja sempre presente e seja bastante valorizada na construção cultural do saber crítico que não pode ser confundido com o saber fragmentado, quase sempre de natureza instrumental. Nesse sentido, caríssimo amigo, a reprodução predominante das relações de subalternidade na hierarquia organizacional das polícias não deve e não pode, sob nenhum pretexto, ser transportada mecanicamente para a sala de aula. Aliás, diga-se de passagem, que no âmbito de um convívio democrático progressista, não há nenhuma contradição entre a liberdade de participação e expressão com o respeito aos valores da hierarquia e a disciplina.
Um abraço fraternal,
Bachelard
Reflexões teóricas extraídas do relatório final do projeto “Arquitetura do SUSP”
“A configuração da inteligência parcelada, compartimentada, mecanicista e reducionista rompe o complexo do mundo em fragmentos isolados, fraciona os problemas, separa o que está unido, torna unidimensional o multidimensional. Trata-se de um padrão cognitivo que destrói as possibilidades de compreensão e de reflexão, reduz as possibilidades de discernimento e fratura a construção do conhecimento crítico.”
“As políticas de segurança pública, elaboradas sob essa racionalidade da simplificação, resultam na execução de um corolário de estratégias, táticas, medidas e ações de intervenção focado na repressão como forma eficiente de eliminação dos problemas e fenômenos da violência e da criminalidade, desqualificando as suas múltiplas manifestações, feições e articulações, social e historicamente construídas.”
“Treinamentos de eficiência operatória, que não sejam antecedidos pela reflexão do psicológico, do interpessoal familiar e do campo profissional; pelo axiológico e pelo simbólico estão fadados ao fracasso por seu artificialismo e desvinculação das demandas mais profundas do beneficiário.”
“O sentido da avaliação dos projetos sociais e culturais consiste em que os diferentes procedimentos de avaliação contribuam para aumentar a racionalidade na tomada de decisões, identificando problemas, selecionando alternativas de solução, prevendo suas conseqüências e otimizando a utilização dos recursos disponíveis. Trata-se, portanto, da invenção de novas tecnologias sociais de regulação do poder, de formas de planificação, de construção da cidadania e de expansão da governabilidade; de gerenciamento de projetos; da construção de aplicativos para a análise estatística; da organização de base de dados; da análise de mensagens qualitativas não-estruturadas; e de formas de comunicação.”
“Esta modalidade de saber teórico-prático poderá contribuir para a renovação das práticas policiais no Brasil, no sentido de adicionar-lhes qualitativamente justiça, equidade social, eficiência e eficácia, o que poderá agregar confiança e legitimidade às organizações policiais brasileiras.”
Comentários:
Em síntese, a superação do paradigma militarista e do academicismo jurídico, que tanto caracteriza o modelo de funcionamento e de organização das instituições policiais brasileiras, nos conduz a pensar sobre as seguintes questões de interesse imediato:
Sob a dimensão cultural das organizações urge propor uma ruptura com o modelo tradicional, que se baseia, sobretudo, na construção de um saber acrítico, de natureza doutrinária que, até mesmo, em algumas de suas manifestações e expressões, pode ser considerado dogmático. É, portanto, de fundamental importância, à guisa de se iniciar um processo de desenvolvimento do espírito científico nas instituições policiais, que haja uma profunda mudança na cultura organizacional, privilegiando-se a crítica como a principal força motriz que impulsiona o desenvolvimento institucional.
Sob a dimensão metodológica é necessário introduzir, em substituição ao empirismo, o raciocínio analítico como princípio basilar para a administração dos serviços policiais e para os processos de tomada de decisão.
A terceira dimensão, a qual denomino de axiológica, não é menos importante do que as anteriores, pois representa a exteriorização de uma cultura organizacional racional, balizada por parâmetros comportamentais de análise científica que se manifesta na prática do serviço policial, produzindo uma rotina virtuosa de planejamento, desenvolvimento de ações e avaliação dos resultados.
Nesse contexto, parafraseando Bachelard, podemos afirmar que as organizações policiais brasileiras estão insertas num processo lento, mas de intensa e profunda reforma institucional, haja vista que os obstáculos à mudança, muitos deles engendrados no âmbito das próprias estruturas corporativas, estão servindo de estímulo para a produção e o desenvolvimento científico na área da segurança pública.
Um comentário:
Pode ser que estejamos num projeto de mudança, contudo os polos não têm a mesma força. O que o autor sugere é um novo modelo de polícia, rompendo com o dogmático sistema bi-partido atualmente existente.
Talvez cheguemos a isso, porém não de forma pacífica, sequer harmônica, mas pelo viés competitivo e da predação.
As instituições policiais não são complementares, mas antagônicas, e uma tenta anular a outra para "usurpar" as suas funções.
Quanto ao método científico de tratamento da Segurança Pública, embora concordemos só temos a lamentar: não será tão cedo que iremos trilhar esta estrada. O conhecimento científico no país está encolhendo, ao invés de crescer. O "emburrecimento" da população é meta prioritária da maioria dos governantes, lamentavelmente.
Contudo, o artigo é de excelente qualidade e o guardaremos com especial atenção.
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