O papel dos municípios na política de segurança
Jacqueline Muniz
Belo Horizonte - 2000.
Tradicionalmente, os problemas relacionados à segurança pública no Brasil têm sido enquadrados ora como uma questão de “soberania nacional” e “segurança interna”, ora como um “assunto de competência exclusiva das polícias”.
Em ambos os enfoques privilegiam-se e reivindicam-se, unicamente, os recursos e as intervenções provenientes das esferas federal e estadual, uma vez que são estas as instâncias responsáveis pelas forças armadas, pelas polícias, pelo sistema criminal, etc.
Note-se, que este tipo de mentalidade restritiva encontra-se de tal modo enraizada entre nós, que freqüentemente subestimamos a importância estratégica do poder municipal na produção de “segurança pública”. Ainda hoje é comum ouvir que a “prefeitura pouco pode fazer porque não controla as polícias” ou que a "constituição de 1988 reserva aos estados a responsabilidade exclusiva de prover segurança aos cidadãos".
Em verdade, estas considerações reforçam uma perspectiva ultrapassada que se mostra incapaz de atender aos desafios colocados pelo provimento de uma ordem pública democrática e contemporânea.
De fato, o desconhecimento sobre o papel decisivo dos municípios nas políticas públicas de segurança no Brasil, tem comprometido, de forma substantiva, os esforços de se construir e enraizar políticas e programas tecnicamente adequados e conseqüentes no âmbito da segurança pública. Idéias criativas e experiências bem sucedidas como, por exemplo, os projetos de polícia comunitária, têm enfrentado inúmeros obstáculos para a sua institucionalização.
E, sem exagero, pode-se dizer que boa parte dessas dificuldades está relacionada ao distanciamento e, até mesmo, à indiferença do poder local. As polícias, que possuem um papel executivo e direto na gestão da segurança pública, são as agências públicas que mais se ressentem da ausência de uma ação articulada com as prefeituras.
Conforme demonstram diversos estudos nacionais e internacionais, a ausência ou a fragilidade de interações regulares entre a administração municipal e as polícias, é um dos principais fatores que contribuem para limitar a eficácia, eficiência e efetividade destas últimas.
Não é demais salientar que as intervenções policiais preventivas, dissuasivas e repressivas implementadas de forma exclusiva e, por conseguinte, dissociadas das políticas urbanas desenhadas pelos municípios, tem ajudado a produzir toda sorte de desperdícios no emprego diuturno dos escassos recursos policiais.
Afinal, por mais e melhor que as polícias estaduais possam fazer, elas sozinhas são, por definição, incapazes de responder ás demandas por segurança experimentada nos centros urbanos. Tal limitação resulta da evidência de que nem todas as questões de segurança pública são problemas propriamente policiais. Ao contrário, a oferta de uma segurança pública democrática que atenda aos imperativos de um mercado da cidadania em crescente expansão, ultrapassa a esfera de ação exclusiva das organizações policiais, requerendo a incorporação de outros atores tão fundamentais quanto os meios de força comedida.
Cabe mencionar, que parte expressiva dos problemas que alimentam a sensação generalizada de insegurança e propiciam o agravamento do temor coletivo reporta-se a fatos difusos que não necessariamente podem ser enquadrados como atos criminosos propriamente ditos. Mas, que se não forem devidamente trabalhados por outras agências além das polícias, podem estimular a ocorrência de práticas delituosas futuras e o recurso individual à violência como uma forma de resolução de problemas.
Refiro-me, sobretudo, aos conflitos, desordens, incivilidades e litígios experimentados nos espaços públicos que desembocam, quase que exclusivamente, nos balcões das delegacias e no atendimento emergencial realizado pelas PMs. Os policiais civis e militares de várias polícias brasileiras, orientados pelos seus conhecimentos práticos, sabem disso.
Expressões cotidianas tais como "a polícia não é poste de luz", "a polícia não é cerca", "o policial é um faz tudo" ou “sempre acaba sobrando para a polícia", usualmente empregadas pelos profissionais da ponta da linha, indicam uma crítica às mentalidades e convicções do passado que merecem ser discutidas, desmistificadas, em nome de uma perspectiva que efetivamente considere as formas pelos quais os problemas da insegurança são vividos pelos cidadãos.
Ora, se os cidadãos vivem nas cidades, ou melhor, em algum bairro ou em alguma comunidade, então as questões associadas à insegurança só podem ser também experimentadas e resolvidas no âmbito das localidades. Por conta desta constatação irrefutável, parece não fazer qualquer sentido buscar mascarar ou reduzir a responsabilidade do poder local na co-gestão da segurança pública, utilizando-se como recurso retórico o apego formal ao desenho político-administrativo vigente.
Não se trata aqui de defender a municipalização das polícias estaduais. Mas, antes, de se procurar superar entraves oriundos de convicções e doutrinas inadequadas á realidade contemporânea da segurança pública.
Creio que hoje estamos vivendo um momento rico no que diz respeito à superação de visões arcaicas e amadoras de enfrentamento da crise da segurança pública. Intervenções desconexas, isoladas, espetaculares e superficiais, ainda que bem intencionadas, revelaram-se fracassadas e onerosas. Com o tempo, elas demonstraram sua incapacidade de produzir respostas consistentes e estáveis já não foram mais além do que tentar "apagar incêndios" e "enxugar gelo".
Se isto se impõe como uma aguda evidência, é preciso caminhar rumo uma visão sistêmica, integrada e aberta da problemática da segurança pública que esteja realmente em sintonia com a natureza, diversidade e intensidade dos problemas de segurança vividos nas ruas.
Uma concepção mais realista e sensata da segurança pública reconhece a necessidade de se ultrapassar o campo de atuação exclusiva das forças policiais e de outros órgãos do sistema criminal, através da incorporação na gestão da segurança pública das comunidades e de outras agências públicas e civis prestadoras de serviços essenciais à população.
Uma vez que o provimento eficaz de segurança pública depende sobremaneira de variáveis extrapoliciais, tais como o ambiente comunitário, os equipamentos coletivos, a infra-estrutura social e urbana, os serviços de utilidade pública, etc., não se pode prescindir de se estabelecer instâncias efetivas de cooperação e participação sobretudo com a administração municipal.
Se, por um lado, as agências policiais pertencem aos governos estaduais, por outro, uma parte expressiva dos instrumentos úteis e indispensáveis ao provimento de segurança pública está sob o controle do município. A título de ilustração cabe mencionar, entre outros, a manutenção e ampliação dos equipamentos coletivos, o ordenamento e fiscalização da ocupação do solo urbano, a coleta regular de lixo, iluminação e manutenção dos espaços públicos, o controle e fiscalização do trânsito, obras de saneamento básico, fiscalização dos transportes coletivos, a melhoria da malha urbana, a expedição de alvarás e a fiscalização dos espaços coletivos de lazer, etc.
Particularmente no campo da prevenção primária - ainda muito pouco explorada no Brasil -, os municípios possuem um papel decisivo. Há muito para se fazer. Suas políticas urbanas e sociais constituem a infra-estrutura da segurança pública as quais, por sua vez, operam como medidas auxiliares e complementares às ações de polícia.
Como se podem perceber os municípios possuem um vasto campo de atuação que não se restringe à criação das guardas municipais. Ainda que pareça repetitivo, vale insistir que fatos urbanos corriqueiros como a falta de iluminação, a acumulação de lixo, o caos no trânsito, a má conservação dos espaços de lazer e demais locais de uso comum, têm uma significativa relação com o “varejo” do crime e seu adensamento em certas regiões da cidade: os assaltos, furtos, conflitos e distúrbios que ocorrem nos espaços coletivos não são simples produtos da “crescente audácia dos bandidos”, da “falta de policiamento nas ruas” e de doutrinas e métodos policiais arcaicos. São, ainda, o resultado do abandono do poder público e da sua incipiente interlocução com a sociedade civil, sobretudo no que se refere à administração dos bens urbanos.
A esta altura parece evidente que a administração municipal emerge como um nexo essencial na orquestração das comunidades com as atividades governamentais estaduais e federais voltadas para a gestão democrática da ordem pública. É, pois, o Município que possui a responsabilidade mais direta pela qualidade de vida da população em seus
aspectos mais básicos. É, portanto, a Prefeitura que detém as ferramentas e órgãos de serviços públicos mais próximos à vida cotidiana das pessoas. Se isto procede, parece inadiável que o poder local se inscreva como um parceiro na tarefa de construção de uma administração estratégica da ordem pública.
Publicado em Segurança Pública: Resultados das Ações do Movimento pela Segurança e Vida. Assembléia Legislativa de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2000.
O que os candidatos pensam sobre segurança pública:
O candidato Molon afirmou que a Prefeitura pode fazer muito mesmo que essa não seja sua atribuição constitucional. Defendeu que o conceito de cidade segura para todos vai muito além do conceito comum e da questão da segurança pública propriamente dita. Saúde, transporte, iluminação (mais luz, menos crime), etc., são partes que integram esse novo conceito. Afirmou que o maior patrimônio do município é a vida do cidadão. Destacou que priorizará um foco de atenção principal na Guarda Municipal (GM) que passará a trabalhar 24 horas por dia. Com a criação da Secretaria Municipal de Segurança e do Gabinete de Gestão Integrada Municipal pretende superar o quadro de desarticulação entre os órgãos que se verifica nas ruas. Pretende também desenvolver um trabalho qualitativo por AISP. A GM será armada apenas com armamento não letal. Será uma guarda comunitária, de proximidade, e atuará com foco na mediação de conflitos, nos crimes de menor monta, ocorrências assistenciais, acidentes de trânsito sem vítima. Pretende criar o observatório de segurança. Pretende reorganizar o sistema de transporte, hoje alternativo, amanhã complementar. Através de licitação pretende afastar os grupos criminosos. Pretende ampliar as ações do PRONASCI de modo a superar a dicotomia segurança pública e cidadania, segurança pública e ação social. Pretende promover uma reforma e limpeza na administração do Município que modo que as ações se integrem e que de fato o Estado preste serviços públicos essenciais de qualidade. Molon pretende dar ênfase aos equipamentos urbanos culturais, de lazer, esporte, etc.
O candidato Chico Alencar defendeu um conceito superior ao conceito de cidade segura apresentado por Molon. Trata-se do conceito de cidade participativa e solidária. Disse que a calamidade comove o Poder Público. A violência no Rio já está no nível de calamidade. Citou os candidatos irresponsáveis que apóiam as milícias e depois condenam àqueles que apoiavam. Condena a política de fuzilamento do governo do estado e diz que como prefeito da cidade exigirá um assento no Gabinete de Gestão Integrada da Segurança Pública. Disse que está em curso um processo de privatização da vida e da segurança. Citou as milícias como exemplo mais eloqüente. Enfatizou a importância da ação social como prioridade e conclamou a sociedade civil organizada, ONGS para participar desse processo. Pretende repensar o aparato burocrático do governo municipal como, por exemplo, a Secretaria de Promoção e Defesa da Vida dos Animais, a Secretaria de Prevenção às Drogas Químicas etc. Disse que hoje, os servidores da GM estão em crise de identidade, principalmente em razão do impasse criado a partir do conflito entre ser estatutário e regido pela CLT. Prometeu ocupar a GM na proteção do espaço público e do patrimônio público com ações orientadas para o meio-ambiente, ronda escolar, ronda hospitalar etc. Pretende construir o conceito de cidade solidária junto com a OAB e ONG ligada ao tema numa parceria para montagem e constituição de escritórios de cidadania, com vistas a possibilitar ao acesso à justiça. Disse que a atual estrutura de poder e de governo tende a criminalizar a pobreza. Nesse sentido o prefeito tem que enfrentar essa cultura que é reprodutora da violência e da criminalidade. Citou o exemplo de Bogotá e defendeu um modelo de administração com muita participação social e transparência. O Rio tem a polícia que mais mata e a polícia que mais morre. Não se pode justificar a falta de combate às milícias pelo simples fato do fato não ser tipificado. Nessa lógica, o que prevalece de fato são os interesses políticos dos partidos.
Para o candidato Fernando Gabeira, a perspectiva é conduzir o Rio para um momento de prosperidade e de segurança. Na visão tradicional das esquerdas, uma vez resolvida a questão social, resolve-se a questão da segurança. Hoje, essas variáveis são indissociáveis, visto que prosperidade demanda segurança. O candidato pretende georeferenciar o crime e avaliar as políticas mais adequadas para a intervenção. Não basta tão somente integração é preciso ter uma visão crítica dos órgãos que compõem do Gabinete de Gestão Integrada. A inteligência e a informação devem estar orientadas para prevenir e resolver crimes. A prefeitura é um manancial de inteligência, contudo, não há um núcleo para pensar essas informações na perspectiva de subsidiar ações. Na área cultural é necessário repensar as expressões culturais que são proibidas, como o funk. A cultura deve ser utilizada para unificar e integrar a cidade. O candidato vê com bastante ceticismo a polícia na mão do Estado. Deveria estar na mão do prefeito. Nesse sentido é importante transformar a GM que é bastante similar à PM. É importante dotar a GM de comunicação para monitorar a cidade como rede e não com algo atomizado. Rede esta articulada com a Polícia. Sobre tolerância zero a idéia da janela quebrada, de manter os espaços adequados e funcionais. Treinamento para tornar os usuários dos diversos equipamentos menos vulneráveis, responsáveis (a exemplo do que ocorre na Suíça e em Israel). Pretende criar o Centro de Atendimento à Vítima da Violência. O candidato destaca a necessidade de libertar as áreas da cidade que estão sob domínio do tráfico ou da milícia. Em Los Angeles a Polícia estabelece critérios diferenciados no trato de traficantes armados e não armados. A idéia – força é entrar, permanecer e prestar serviços.
O candidato Paulo Ramos disse que a Justiça antecede a Paz. Pode haver segurança, mas sem paz e tranqüilidade... Sem Justiça não há liberdade, fraternidade, solidariedade igualdade. O prefeito deve compreender qual o modelo de segurança no Rio (é uma premissa falsa). Está em curso uma imposição de candidatos capitaneada pelo sistema Globo e pelos Institutos de Pesquisa. O modelo sempre foi baseado na desnacionalização, na exportação e na concentração de renda. O modelo de segurança pública, vide pecúnia, tem na necessidade de matar, a premissa, o elemento propulsor do crime organizado que gera a favela e sua criminalização. Milícia não é a ausência do Estado, mas sim a presença do Estado patrocinado pelos governantes. O carnaval está nas mãos dos controladores do crime organizado (Cidade do Samba). O policiamento não é feito. De ser considerado o esforço para recuperar a PM no trânsito, pois é uma maneira de aumentarmos o policiamento nas ruas. A política habitacional deve ser conduzida em torno de um projeto com recursos do FGTS. Os CIEPS devem ser retomados e os clubes sócio-recreativos são espaços que devem ser potencializados.
Um comentário:
Desconsiderando-se as "abobrinhas reativas" dos candidatos, vale comentar o texto da Professora Jaqueline Muniz. Tem ela total e absoluta razão, mas enquanto não se reorganizar a segurança pública no país a partir da Carta Magna, sepultando-se o modelo que lá está gravado, de "Polícia do Estado", nada mudará. A uma porque não interessa aos prefeitos abraçar responsabilidades com tarefa tão desgastante, demais de terem a desculpa de somente gerir as guardas municipais restritas a ações mínimas, podendo assim transferir suas responsabilidades para os estados-membros. Segundo porque aos estados-membros cabem bem mais pagar a conta do seu sistema ainda agrilhoado à União e limitado em suas atividades de "polícias partidas". No caso das Polícias Militares, o Inc. XXI do Art. 22 da CRFB diz tudo. Se não se reescrever o Título IV da Carta Magna, focando a defesa do cidadão e da comunidade como prioridade, ficaremos na mesma e a violência e o crime avançarão impunemente.
Muito elucidadtivo o artigo da professora.
Abraços.
Emir
Postar um comentário