Não raro, o policial militar do Rio de Janeiro é visto como um agente do Estado arbitrário e violento. Não obstante, no caso particular da sociedade fluminense, algumas dessas percepções são atenuadas quando o destinatário da ação trata-se de indivíduo infrator da Lei ou, pelo menos, suspeito de tê-la infringido, geralmente pobre, negro e favelado, ou pertencente a minorias, segmentos ou grupos sociais cada vez mais marginalizados. Algumas pessoas, intrinsecamente, percebem o policial como sendo o agente do Estado que detém uma identidade profissional semelhante à figura do que seria uma espécie de “gari social”. Aquele que age com a responsabilidade funcional de limpar a escória humana do convívio social. Emerge dessa triste realidade a necessidade de se pensar o modelo institucional da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e a sua relação como os seus agentes. Salvo engano, nesse contexto, seria bastante importante, conveniente e oportuno questionar em que medida o policial – militar do Rio de Janeiro é vítima e, ao mesmo tempo, algoz das ações arbitrárias e violentas praticadas. Essa mesma dramaticidade é regularmente reconhecida e reproduzida no discurso bélico da ação policial, legitimado por expectativas e demandas reacionárias da sociedade que, assim como a administração policial, privilegia a idéia de força, sob a qual a idéia de serviço policial deve estar inserida, sempre num segundo plano. Nesse sentido, talvez prevaleça a tese de que a sociedade e a própria instituição policial, ambas compreendidas como expressão política do poder, consinta de forma não manifesta a ação arbitrária e violenta da Polícia. São traços culturais que confirmam a relação corrupta das instituições públicas, da sociedade como um todo, com os valores democráticos de uma sociedade que se pretende igualitária. Determinam, portanto, a prática política de governo e também ajudam a consolidar a cultura organizacional das instituições policiais e suas dinâmicas despóticas, internas e externas. Destarte, grosso modo, poder-se-ia considerar que esse tipo de “consentimento latente”, permeado no imaginário coletivo da sociedade e das instituições policiais fluminenses, legitima a ação arbitrária e violenta da Polícia, o que, por si só, suscita outras indagações derivadas. Sobre a construção do modelo do policial militar que é vítima-algoz faz-se necessário um exercício preliminar de elucubração para tentar delinear alguns aspectos e fatores substantivos que concorrem para a sua determinação. Empiricamente, é razoável supor que todo o conjunto das teorias científicas e práticas aprendidas durante o período da formação e do treinamento policial estão em perfeita consonância com os valores que regem uma sociedade democrática. Contudo, também é razoável supor que existe uma força superior, permanentemente inscrita no âmago das relações institucionais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro com os seus agentes, que destaca a importância da cultura organizacional intrínseca à Corporação, no ser e no fazer “polícia”, que desvirtua completamente a teoria da práxis policial. Este talvez seja o segundo fator ou elemento concorrente que caracteriza o modelo da vítima – algoz. O primeiro como dito anteriormente está presente na própria sociedade na forma de uma espécie de “consentimento latente” para o exercício de um mandato policial atípico no âmbito do Estado democrático.
Atualmente, uma outra questão bastante recorrente, nos leva a refletir sobre qual é a real dimensão do poder de influência da instituição policial, enquanto instância de decisões políticas, que são particularmente dirigidas com vistas à definição do papel do policial enquanto servidor público. Trata-se de inferir “tão somente” quais são as possíveis causas e os supostos efeitos que ajudam a reproduzir o padrão do policial – militar, vítima – algoz. Existe um universo de conjecturas bastante razoáveis que podem contribuir para identificar expressões despóticas da instituição policial que incide diretamente sobre os policiais e, via de conseqüência, sobre a população destinatária de seus serviços, a saber: a existência de um regulamento disciplinar anacrônico; o modelo mecanicista de administração; a existência de círculos dentro das escalas e estruturas hierárquicas da Polícia Militar; o preconceito e a descriminação que se impõe pela simples razão de existir de tais círculos; as péssimas condições de trabalho e salariais; a privatização dos serviços de segurança, a corrupção sistêmica presente nas estruturas de poder dos órgãos de Estado, etc... Todos esses aspectos e fatores que podem ou não concorrer para a constituição do modelo policial – militar vítima – algoz merecem ser estudados com a devida profundidade. Contudo, talvez seja interessante sublinhar alguns indicadores que podem ajudar a melhor compreender a necessidade em se estabelecer esse modelo:
O policial – militar vítima: no período compreendido entre o ano de 1995 e junho de 2005, 8.473 policiais – militares fluminenses foram mortos e feridos em razão de ações violentas, em distintas situações de serviço e de folga. Desse universo, 1.552 foram mortos e 6.921 foram feridos. Do total de mortos e feridos, 31,7% dos casos refere-se a causas decorrentes de acidentes de trânsito. Dessa fração 63% dos casos ocorreram em situação de folga. Mais de 50% dos casos está relacionado com causas associadas aos desdobramentos diversos resultantes de ações criminosas. No período compreendido entre 2005 e 17 de julho de 2007, 2.000 policiais – militares fluminenses foram mortos e feridos em razão de ações violentas, em distintas situações de serviço e de folga. Desse universo, 334 policiais militares foram mortos e 1.666 foram feridos. Nesse intervalo, considerando o total de policiais militares mortos, 57 foram mortos em situação de confronto armado e 277 em situação de folga. Do total de feridos 820 casos ocorreram em situação de serviço e 850 em situação de folga. Como se pode depreender dos números acima, a ocorrência de policiais militares mortos e feridos pode ser considerada um caso atípico em face dos padrões internacionais. Os alarmantes números também suscitam, como dito anteriormente, indagações sobre as causas concorrentes e determinantes para configuração desse quadro. Dentre as possibilidades causais recorrentes que se podem extrair da realidade empírica pode-se destacar: as péssimas condições de trabalho e salariais como indicador original da ausência de uma política de prevenção de acidentes de trabalho e estresse, da falta de equipamentos básicos de proteção e segurança individual, da desvalorização do profissional de segurança pública materializada pelo baixo nível de formação e treinamento e também pela generalização desenfreada da prática do famigerado “bico” e seus efeitos perversos.
O policial – militar algoz: o outro lado da mesma moeda se expressa na letalidade da ação policial corroborada pelo baixíssimo nível de confiança da população na instituição policial e na própria dinâmica do cotidiano urbano caracterizado pela péssima qualidade dos serviços prestados pelos policiais militares. Resultado de pesquisa inédita, recentemente divulgada pelo Instituto de Segurança Pública informa que menos de 10% das pessoas entrevistadas confiam totalmente nas instituições policiais fluminenses. Os maiores medos da população são: ser vítima de bala perdida (57%); estar no meio de um tiroteio (43,5%); ter a residência assaltada (37,6%); ser assaltado na rua (36,1%); ser assaltado no ônibus (25,9%); ser confundido com bandido pela polícia ou por criminosos rivais (22,4%); ser vítima de agressão sexual (22,2%); ser vítima de seqüestro ou seqüestro-relâmpago (20,9%); ter carro ou motos roubados em assalto (12%); ser vítima de agressão verbal, física ou de extorsão por policiais (8,9%). Em 2007 foram registrados 1.333 casos de autos de resistência que correspondem a 1.333 civis que morreram pelo fato de terem supostamente reagido à ação policial. Somente nos cinco primeiros meses de 2008, 649 civis foram mortos pela Polícia. Na cidade do Rio de Janeiro, em 2007, 222 pessoas foram vítimas de “bala perdida”, das quais 17 morreram. Em tese, os indicadores permitem afirmar, preliminarmente, que o policial – militar fluminense, vítima – algoz, é o que mais mata e o que mais morre no mundo. Faz-se urgente, portanto, de fundamental importância, identificar e investigar quais são as expressões político – institucionais (órgãos do estado, órgãos do governo, mídia, etc) mormente não declaradas mas que repercutem sobre as organizações policiais e seus agentes e que se convertem em cultura e prática propiciando e influenciando a repetição de causas intervenientes e de ações na reprodução sistemática desses fenômenos bilaterais de vitimização. Até a presente data (6 de outubro de 2008), somente no Estado do Rio de Janeiro, mais de 85 policiais militares morreram violentamente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário